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Dona Fideralina e o escravo rebelde

Batista de Lima




O escritor Dimas Macedo proferiu palestra sobre Dona Fideralina Augusto Lima, no Instituto do Ceará (Histórico, Geográfico e Antropológico), no dia 20/09/2015. Depois, as vinte páginas sobre essa matriarca da família Augusto foram publicadas na revista "Terra do Sol". Nesse texto, o poeta Dimas se esmera em apresentar dados que impressionam o leitor.

Começa que Fideralina morreu em 1919, aos 87 anos. Nunca se candidatou a cargo público em Lavras, mas era quem mandava na cidade. Mesmo assim dividia seu tempo entre a casa urbana e a do sítio Tatu, que era a sua preferência.

Segundo Dimas, por ocasião da morte do Major Ildefonso, em 1876, marido de Fideralina, a matriarca apresentou no inventário 21 propriedades agrícolas e 16 residências urbanas. Outro dado impressionante é que no transcorrer da Sedição de Juazeiro, 1914, com a revolta contra Franco Rabelo, ela colaborou com cinco mil cartuchos e um contingente de quatrocentos homens.

Esses números impressionariam hoje, mas à época, os coronéis do Cariri costumavam ter seus batalhões particulares para vinditas em tempo de luta e labuta no eito em tempos de paz. O principal desses potentados era o Padre Cícero.

Dona Fideralina era devota do Padre Cícero. Acontece que seu filho, Coronel Gustavo, era desafeto do Dr. Floro Bartolomeu. Isso fez com que no Pacto dos Coronéis, em 1911, a velha matriarca se fizesse representar por seu filho Gustavo, que por sua vez enviou a Juazeiro para o conclave organizado pelo Padre Cícero, o neto de Fidera, João Augusto. Aliás, Fidera era uma das formas como era chamada essa velha senhora. Outra forma era Dindinha. Também havia quem a chamasse de Madrinha, sendo seu afilhado ou não. Era uma senhora que imprimia respeito por onde passava.

Dindinha não era muito de sair de Lavras. Às vezes ia a um dos distritos em ocasiões especiais. Conta-se que lá no distrito de São José, hoje Mangabeira, Dona Fideralina ia sempre por ocasião da Festa do Padroeiro, São Sebastião, em 20 de janeiro. Muito depois da libertação dos escravos ela ia transportada por alguns deles na sua tradicional liteira. Isso realmente comprova que mesmo com a Lei Áurea, ela manteve seu contingente de negros servis. Ainda conheci, na minha meninice, o Negro Luís que era chamado de Luís Preto, que é citado por Dimas no seu ensaio.

Luís Preto era filho de uma escrava de Dona Fideralina. Ia também ser escravo, mas aos nove anos, juntamente com um dos netos da matriarca, tomou banho numa das cacimbas do sítio Tatu, enlameando a água que Dindinha ia beber. O branquelo do neto nada sofreu de castigo, mas Luís foi submetido a tão fortes açoites que fugiu do Tatu e nunca mais tomou banho. Mesmo durando mais de cem anos, Luís Preto tinha tanta aversão à água que até da chuva ele se livrava para cumprir seu lundu. Era muito magro, com barba rala e comprida.

Luís Preto era também chamado de Luís de Santa pois casara com uma senhora muito convicta a que chamávamos Dona Santa. Criaram uma menina chamada Maria, já falecida, que fora casada com o cambiteiro, hoje aposentado, Manuelzinho Macário, que ainda é vivo, residindo em Mangabeira. Luís era irrequieto e ia de casa em casa pelos sítios, fazendo tarefas caseiras como pilar arroz, milho e café e botar água nos potes. Sempre recebia, como pagamento, víveres de primeira necessidade, com o que sustentava os seus, no casebre lá para as bandas do Açude Novo, do meu avô.

Ainda a respeito de Luís Preto, o escritor Dimas Macedo afirma que ele era atacado por alucinações. Essa afirmação me conduziu ao episódio de sua morte lá no sítio em que morávamos. Era o início da década de 1960 e Luís já contava com mais de cem anos. Parecia um faquir de tão magro. Chegou um dia pela manhã à nossa casa e disse para meu pai que a morte o viera buscar. Que há três dias, a "caetana" estava trepada na aroeira que ele cultivava em frente ao seu casebre, e que a cada dia mais ia se aproximando do tronco da árvore para o encontro fatal com ele.

Foi nesse dia, já quase noitinha, que Maria, sua filha adotiva, veio avisar na nossa casa que o pai estava estático abraçado à aroeira. Meu pai, chegando lá, encontrou Luís Preto sentado no chão e abraçado ao tronco da aroeira com os pés e as mãos. Estava morto. Foi enterrado quase três dias depois. Fizeram um caixão de umburana como sua última veste. No Cemitério, um amigo pediu para abrirem o caixão para vê-lo pela última vez. Ao abri-lo, dizem que saiu um cheiro de alfazema. Isso há cem anos sem tomar banho, sem escovar os dentes. Aliás, nunca perdeu um dente e nunca mais voltara ao Sítio Tatu de Dona Fideralina. Luís Preto não ficou escravo de Fidera, mas escravisou-se a sua própria rebeldia.


FONTE: Jornal Diário do Nordeste - 13/12/2016.


 

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