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Dom Quixote e suas pátrias

Batista de Lima



Num lugar da Mancha, de cujo nome não quero lembrar-me, não há muito tempo vivia um fidalgo desses de lança no cabide, adarga antiga, rocim magro e galgo corredor. Assim começa a narrativa de um dos clássicos mais significativos da literatura em todos os tempos. Seu título: Dom Quixote de la Mancha. Autor: Miguel de Cervantes. Das três edições que conservo na minha estante, a que mais aprecio e à qual tenho recorrido mais é uma de 2005, editada em Portugal, pelas Publicações Dom Quixote, em 625 páginas luxuosamente trabalhadas. A tradução e as notas são de Miguel Serras Pereira e as ilustrações de Salvador Dalí. Como é uma edição especial de homenagem aos 400 anos do Quixote, alguns estudiosos da arte literária, escreveram seus textos introdutórios. Maria Fernanda de Abreu, Sílvia Iriso e Gonzalo Pontón, além de Sylvia Roubaud fazem conexões do clássico espanhol com momentos da história portuguesa, com ênfase nas grandes aventuras náuticas dos lusos bem como com o sonho de conquistas do rei Dom Sebastião. Ou seja, trinta anos antes do aparecimento do livro de Cervantes, Dom Sebastião materializou uma aventura quixotesca em terras do Marrocos. Como afirma Eduardo Lourenço, Portugal teve sonhos muito maiores que ele próprio e que foi Dom Sebastião quem o levou à última aventura quixotesca. Mas foi, no entanto, montados em seus rocinantes a vela, navegando por mares nunca dantes navegados, que Vasco da Gama, Gonçalves de Magalhães e Cabral, antes do infante aventureiro, que, cavalgando sonhos, levaram a bandeira portuguesa muito além do horizonte. De forma que se deve olhar a história de Portugal através do olhar de delírio de um Quixote e da realidade enraizada no seu escudeiro Sancho Pança. Assim, é preciso que se analise a saga portuguesa por duas vertentes, uma idealista e outra materialista, da mesma forma que se apresentam Dom Quixote e Sancho Pança. Dom Miguel de Cervantes Saavedra escreveu um monumento literário tão exuberante que além de resistir com o tempo a péssimas traduções, criou em torno de si adjetivos e substantivos definidores. É comum se ouvirem termos como ´cervantismo´, ´cervantofilia´, ´cervantina´ e ´cervantada´. É tão emblemática essa obra que além de criar o adjetivo ´quixotesco´, para tudo que é aventureiro e utópico, aplicando-se a aventuras de governantes, não é sem razão que estudiosos portugueses conseguem ver ´uma sebastianização de Dom Quixote e uma quixotização de Dom Sebastião´, como se ambos tivessem algo messiânico a cumprir. Fundir Dom Quixote e o Encoberto numa imagem de homogeneidades é imaginá-los ´irmãos, na loucura, na castidade e na fé cavaleiresca´. Ao mesmo tempo não se pode pensá-los a não ser como seres dicotômicos como é toda a obra de Cervantes. Não se pode pensar Dom Quixote sonhador sem Sancho Pança ao seu lado montado na realidade. Não se pode pensar um Dom Sebastião visionário sem um Portugal real entrando em decadência. Sonho e realidade, espírito e matéria, passado e futuro estão simbolizados em Dom Quixote e Sancho Pança, Dom Sebastião e o quinto império. Há entre eles um desassossego que põe um pé na história outro no mito. Dom Quixote vivia com a pátria na cabeça. E essa pátria com raiz na Espanha, poderia baixar acompanhamento em Portugal ou em qualquer outro território onde pudesse germinar a honradez, a fé cavalheiresca e a castidade. Contanto que não houvesse limite para o sonho, ou como afirma Pinheiro Chagas, se referindo ao cavaleiro da triste figura: ´se fosses rei, perderias um reino como El-Rei Dom Sebastião perdeu Portugal. Não é pois de se admirar que enquanto Dom Sebastião se lançava ingênuo no fatídico combate pela cruz, pela glória, pela redenção dos oprimidos (...) Filipe II espiava com um sorriso frio as suas loucuras cavalheirescas´. É por isso que o cavaleiro espanhol e o jovem rei de Portugal são chamados de ´loucos sublimes´. Se Dom Quixote era um rei com reino e exército apenas na cabeça, Dom Sebastião coincidentemente, filho de uma espanhola, era um Quixote coroado. Se a Espanha produziu Cervantes, Portugal produziu Camões. Quando Portugal perdeu seu Quixote ao tombar morto em Alcácer Quibir, criou logo outro que foi o sebastianismo, a crença no desaparecido desejado que um dia poderia voltar para soerguer a pátria moribunda. Daí que, se Quixote levava a pátria na cabeça, o povo português levava em si a fé no retorno do Encantado. Essa fé invadindo desde o mais simples português até aos mais célebres de seus escritores. Miguel de Cervantes, o criador dessa obra arrebatadora, levou uma vida de simplicidade, de renúncias e pouco exemplar a partir do início da efêmera juventude no seminário dos jesuítas. Nascido em 1547, filho de médico cirurgião, foi camareiro de cardeal em Roma, militar e prisioneiro na Argélia, após participar da célebre batalha naval de Lepanto. Essa sua vida de aventuras serviu-lhe de matéria literária a partir do romance pastoril A Galateia. Já a elaboração do Dom Quixote deu-se exatamente no seu momento de vida mais marcado pela penúria econômica. Escreveu ainda suas Novelas Exemplares pouco tempo antes de morrer, em 1616. Barroco, o Quixote só funciona para o leitor com a dicotomia do sonhador cavaleiro da triste figura em permanente litígio com o escudeiro realista Sancho Pança. São dois momentos que se imbricam formando nas suas contradições, um só personagem. Se Sancho é a antítese de Dom Quixote é porque representa um lado do conflito barroco de dois personagens em uma só personificação. No confronto entre o cavaleiro e o escudeiro surge uma atmosfera cômica impressionante como uma forma de zombar de uma indecisão cruel que vitima o homem da época, dividido entre tantas dicotomias. Portanto, a leitura de Dom Quixote de la Mancha tem razões para perdurar ao passar dos séculos. Afinal, a cada leitura que se faz desse clássico, novos rostos vão surgindo. Se aqui o colocamos em confronto com o sonho português, ali poderemos situá-lo em personagens e pátrias novas aventureiras. Pois é tão rica essa obra que os próprios portugueses afirmaram: ´os meninos manuseiam-na, os moços lêem-na, os homens entendem-na e os velhos celebram-na´.

 

17/06/2008.

 

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