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Do amparo ao desamparo

Batista de Lima


Desde que fomos alijados do Paraíso que sofremos de desamparo. Daí que vivemos permanentemente em busca de proteção. Tudo que fazemos é para nos proteger no presente e no futuro, e às vezes, até nos protegermos de um passado de que nos culpamos. Sacrifícios de hoje têm um direcionamento certo, é a recriação de um paraíso perdido. Por isso que não se tem notícia de um ser mais desprotegido do que o homem. Talvez seja isso resultante da consciência do efêmero da vida. Vivemos tocando para a frente, até quando possível, um desfecho do qual temos certeza, e que tentamos negar por não compreendermos tanta fatalidade da qual até hoje ninguém escapou. Somos mais frágeis por sermos conscientes da nossa fragilidade.

Um dos melhores abrigos que construímos para nossa proteção é a linguagem. É tão importante a linguagem na nossa vida que já houve quem dissesse que o homem é um feito linguístico, é um produto verbal. Afinal precisamos do outro para sobrevivermos, e só chegamos a essa interação para a sobrevivência através da comunicação que é a linguagem posta em prática. Essa prática muda de pessoa para pessoa, fazendo com que uns sejam mais, outros menos integrados no meio social. A prática individual dessa linguagem é uma construção pessoal, é um comportamento.

Esse comportamento é sempre resultante da busca de um amparo. Acontece que esse amparo quando recebido sem esforço pessoal, não tem o mesmo efeito do amparo conquistado a duras penas. Por isso que o desamparo pode se tornar uma arma para conquistas. O desamparado que consegue driblar suas limitações e alçar voos de sucesso se torna uma figura picaresca. Afinal, o pícaro se constrói a partir de uma individualidade desamparada. O indivíduo chega a concluir que sua sobrevivência depende mais de si que do outro. É aí que ele se desdobra e se torna um super-homem.

A figura picaresca precisa muitas vezes de uma certa malandragem para escalar dificuldades que surgem na sua trajetória de vida. O menino de rua pode chegar a um cidadão de respeito, o retirante pode se tornar político de projeção, o soldado pode chegar a comandante. A literatura está repleta de personagens com esse perfil. Leonardinho Pataca, em "Memórias de um Sargento de Milícias", de Manoel Antônio de Almeida, é um exemplo de um desamparado que construiu sozinho seu próprio sucesso. Cândido, em "Cândido, ou o otimismo", de Voltaire, sobrevive, com sua argúcia, às mais difíceis situações. Dom Quixote, criação de Cervantes, é um personagem que, em nome de um sonho se submete às mais difíceis aventuras. Seu caso é comprovação de que nossos sonhos é que nos movem. A razão de viver é tecida com fios de sonhos.

Para psicanalistas, o desamparo é fruto de um outro que não responde. Um grito que não ecoa pode ser sintoma de um desamparo. Uma análise que não foi ao fundo do poço está incompleta, e por ter terminado antes da conclusão produz um desamparo. Qualquer ruptura brusca leva a esse estado de angústia. Tenho como exemplo, meus doze anos com meus pais, na bagaceira do engenho, nos açudes, na camisa aberta ao peito, para, de repente ser colocado em um seminário interno. Toda aquela ruptura provocou um desamparo que tem me acompanhado ao longo dos anos e cujo desgaste tem sido muito lento no passar dos tempos. Isso não é novidade nem na realidade nem na ficção. "O Ateneu", de Raul Pompéia, o "Dom Casmurro", de Machado de Assis e muitas outras obras tratam dessa angústia dos internos.

O desamparo como fonte de estudos tem levado a conclusões que respaldam até terapeutas na sua lida do dia a dia. O treinamento em laboratórios explicita o desamparo aprendido que é resultante da dificuldade de aprendizagem, apresentada por indivíduos que tiveram experiência prévia com estímulos incontroláveis. Nossos animais domésticos nos dão mostras de desamparo quando quebramos suas rotinas. Um bezerro desmamado, um cavalo não retornado de uma viagem, um cachorro que se perdeu na mudança de seu dono, todos possuem seus desamparos.

Entretanto, quem se ampara da chuva não conhece o molhar-se. Quem não foi mordido de cobra não conhece o gosto que o veneno tem. Quem não levou topadas não se lembra do chão que pisou. É evidente que essas experiências são formadoras de resistências, mas se permanentes, calvanizam a qualidade da vida. Estar na rua é vestir-se dos atrativos que ela oferece. Permanecer como abandonado, desamparado, nos viadutos, nas praças, é um caminho para a marginalidade. As grandes cidades possuem grandes problemas e um deles é a indigência em que vivem os desamparados.

É triste se constatar que no meio da multidão, o desamparo pode estar instalado. A falta de comunicação entre as pessoas que se cruzam produz uma solidão para a qual a modernidade não encontrou seu remédio. Acontece que esse desamparo pode estar até dentro de casa, quando as pessoas possuem os laços de sangue mas não mantêm laços de afeto. As novas tecnologias, por exemplo, facilitam a comunicação entre as pessoas mas enfraquecem a energia que se troca no aperto de mão.

O sal da lágrima não consegue navegar nas redes sociais. O sabor do beijo pede o contato dos corpos. É por isso que a frieza que se instala via PC tem criado desamparos, tem enchido clínicas de terapias as mais sofisticadas. Ficamos, assim, sem entender por que criamos novíssimos meios de comunicação que rompem limites e eliminam distâncias, mas continuamos sós, cada vez mais sós. Somos cada vez mais desamparados porque o paraíso que perseguimos nós o colocamos muito distante de nós, quando muitas vezes ele está instalado aqui pertinho da gente, às vezes, até dentro da gente.


jbatista@unifor.br

30/10/12.

 

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