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Discurso de beira de cova

Batista de Lima


Com essas coisas de morte ninguém brinca. Ela é tão sisuda, tão real, que uma forma de abrandá-la é ignorar seu assédio permanente. Dizem que de todos os deuses, o único que não aceitava louvores e pedidos de clemência era Tanatos. Até hoje não se tem notícia de que esse tal deus da morte tenha poupado alguém. Diante de tanta fatalidade, há pessoas que encaram a indesejada das gentes com certas artimanhas de adestramento. Uma dessas pessoas é Geraldo Costa, um ex-agricultor, já passado dos sessenta, morador da capital, exímio dançarino de forró e plantador de meninos na sua mulher Ritinha, enquanto a terra era fértil.

Tudo começou quando enterramos um parente e cunhado, desses que não deveriam ter morrido. Foi aí que na beira da cova, rodeada por mais de cem tristezas, alguém me solicitou uma palavra de despedida. Era o tal Geraldo em conversa de pé de ouvido. Movido pela emoção da perda, desfiei alguns adjetivos, desenterrei alguns antepassados ali silenciados, fui a Roma, passei por Juazeiro, falei de amor, esperança, caminhos deixados e três filhos por criar, e terminei vertendo uma lágrima compassiva ao som de palmas. Aliás, meu povo é tão sublime e gosta tanto de discurso que aplaude até orador de sepultamento, principalmente quando presente está um Geraldo para puxar o aplauso.

Enterrado o morto, secadas as lágrimas, abrandado o choro, ainda estava no cemitério quando fui acercado pelo nosso puxador de palmas. Vinha ele com pedido por demais inusitado. Queria porque queria, palavra empenhada, que no dia do seu enterro fosse eu o fazedor do discurso de despedida. Afinal, segundo ele, nada mais triste que enterro sem discurso, e que discurso sem palmas. É tanto que ainda intimou alguns presentes para que nesse dia de seu desfecho fatal, após meu discurso, alguém iniciasse as palmas. Levando o fato na brincadeira, nós, cinco irmãos e cunhados do sepultado, baixamos a porta de uma bodega e fomos beber o morto. Entre choro e goles esvasiamos o estoque e quase viramos a noite.

Após tanta beberagem, mal saímos do recinto, lá estava Geraldo vigilante ao pé da porta, preocupadíssimo com a saúde do orador. Que não bebesse tanto, pois de minha saúde dependia o discurso da sua partida. Essa insistência não ficou por aí. A partir de então, em encontros de alegrias ou de tristezas sempre vem a advertência: não esquecer o discurso no dia do seu enterro.

Foi então que uma certa preocupação começou a me azucrinar. E se eu morresse antes? Foi aí que Geraldo deu a solução: deixar o discurso escrito. Estando o discurso escrito, algum familiar leria na hora. A partir de então, em qualquer encontro nosso, sacro ou profano, vem logo sua pergunta sobre minha saúde, se tenho sentido algum mal-estar, se meus exames anuais deram bem, se o PSA acusou alguma coisa. Pergunta até pelo nível da glicose e do ácido úrico. Pergunta se tenho dormido bem, se não estou exagerando na bebida, se tenho evitado comer doce e consumir carne vermelha. Já chegou até a sugerir certos alimentos naturais. Mas sempre termina, diante de qualquer sintoma que nomeio, a me cobrar o discurso feito.

Essa implicância tem sido tão grande que já receitou chá de quebra-pedra e de torém, para meus cálculos renais e a ingestão de dois litros de água por dia. Isso só porque relatei que tive de expelir umas pedrinhas que cismaram de virar pedreira lá por perto dos rins. Para os meus males de pulmão, faringite e tosse, receitou mel de abelha todo dia, mas depois mudou para laranja para evitar a alta da glicose. O que ele quer mesmo é que eu sobreviva até o dia de seu enterro para que no sétimo palmo do seu sono, ouça as minhas palavras e as palmas dos circunstantes. Até umas doses de lambedouro já tive que ingerir para aliviar um defluxo.

O exagero de Geraldo chegou a tal ponto que na última vez que me viu, notando algumas penugens brancas que desabrocham no meu telhado, ficou deveras preocupado e de novo cobrou o discurso por escrito. Outro dia, quando aproveitando a fila que meus sessenta e um me dá direito no banco, fui flagrado pela presença do Geraldo que transtornado me cobrou com veemência a escrita do tal discurso.

Tudo isso tem sido motivo de preocupação deste orador. Afinal, já iniciei várias vezes esse texto fúnebre, mas me falta a inspiração da presença do morto, do choro da viúva, das lágrimas dos filhos, daqueles túmulos rodeando os presentes. O clima de cemitério, o rosto triste dos amigos em despedida e o caixão descendo à cova, tudo isso faz falta na hora de escrever neste birô. Já pensei em convidá-lo pra irmos ao cemitério e lá fantasiarmos a cena fúnebre para ver se a inspiração me favorece. Mas, Geraldo, não quero escrever esse discurso, pois estarei agourando a mim próprio, ao admitir que irei antes. Por outro lado não gostaria de ficar obrigado de dizer minhas palavras de improviso, pois estarei tangendo você antes de mim. Façamos o seguinte: deixando o dito pelo não dito, deixemos o tempo rolar, aproveitemos o que nos resta de vida, vá para sua dança que eu vou para minha leitura. Afinal, essa preocupação de nós dois provoca insônia, a insônia leva à gastrite, a gastrite vira úlcera, a úlcera se torna câncer, e é isso que a morte está querendo.


jbatista@unifor.br

20/07/10.

 

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