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Dialeto Manoelês


Batista de Lima


Manoel de Barros nunca conseguiu descobrir o período necessário para um sapato ser árvore. Por isso resolveu estudar formigas, principalmente quando elas escolhiam seus vestidos, e iam arrastar pelos caminhos uma estrela suja. Daí que ele anda com um rio completo no bolso, preparado para uma precisão maior. Seus bois são abertos a borboletas e na beira d´água ele põe palavras para secar, mas só depois de mergulhá-las, lavá-las e enxaguá-las nos rios do Pantanal. Afinal, Manoel é um homem riachoso e tem visto a poesia tirar as calcinhas.

Manoel de Barros procura grãos de sol nas fendas do insignificante para encontrar metáforas com cheiro de terra. É um homem feito de frases. Para fixar palavras umas nas outras usa parafusos de veludo. Entre seus principais utensílios há um alicate cremoso e um travador de amanhecer. São no entanto as palavras com febre as de sua preferência. Morou sempre tão perto do abandono que era possível tocar sua pele. Era muito pouca gente no lugar. Tão pouca gente que ás vezes faltava história para contar, então eles inventavam. Ali medravam mentiras, mas principalmente invenções. O importante era abastecer a solidão, conversando bobagens com os sapos e vasculhando a infância das coisas até chegar o nascimento do mundo. Tudo lhe sonhava, desde as garças, às borboletas, e quando alguma coisa faltava ainda tinha a grande saída que era vasculhar profundidades no nada.

Manoelês é um dialeto que ele criou no Pantanal. Vasculhou os trastes e deu vida às coisas mais insignificantes. Olhou para o chão antes de olhar para o céu. Definiu as coisas. Para ele, árvore é alguém com resina e falenas. O sol é quem tira a roupa da manhã e acende o mar. Poeta é indivíduo que enxerga semente germinar e engole céu. Um poeta é um sabiá com trevas. Quando procura definir a boca, o poeta chega a compará-la a uma "brasa verdejante que se usa em música / Lugar de um arroio haver sol / Pequena abertura para o deserto". O senso comum diria que seria a boca uma abertura para o abismo. Acontece que Manoel de Barros não gosta do senso comum.

Ao lado de Manoel passa um rio que se chama Taquari. É um rio desbocado e mal comportado. Ao mesmo tempo é um criador de planuras e isso entedia. Quando o dia clareia é possível ver uma casa nascendo para depois ir tomar banho no espelho das águas. Só quando essas casas se acendem é que os mosquitos deixam de balançar as redes de quem dorme. Tudo ali, para o poeta, está em processo de enfrentamento. Até o silêncio rende de tanto reproduzir. Esse silêncio é tão forte que sai empurrando um bêbado pelas ruas. Os sapos são estrelas que vieram se arrastar pelo chão para se embebedarem do cheiro da terra. Diante de tudo isso, as palavras se ajoelham e pedem por salvação. Afinal, os peixes que abanam o rio não costumam falar nada. Manoel abre a tampa do poema e a poesia escorre inundando o mundo.

Esse poeta tem como seu maior infinito ser apoderado pelo chão. Vive hortando palavras, botando enchimento nos nomes das coisas. De tanto observar, descobre que o jardim está pensando e que os peixes lacrimejam quando o Pantanal se acomete de seca. A sua escrita começa quando vasculha os nervos do entulho. Poeta do traste é apenas um enquadramento com que lhe tentam prender. Ele no entanto está mais preocupado com a aba verde das horas e a maçã que come Eva. Pousar no seu discurso é sujar-se de natureza, tornar-se concha, botar meia-sola no cansaço das coisas e alisar a barriga dos substantivos até eles revelarem seus mistérios que ninguém descobriu. Por isso que "coisas como adjetivos - têm muita importância para os pulmões da poesia".

Manoel inventou o nadifúndio. Depois concluiu que essa desimensidão se trata de um trastal com um relógio com o tempo enferrujado por dentro. Nada de sobrosso se ali topar-se com "uma concha com olho de osso que chora". Nesse mundão de nada cheio, é preciso tornar-se um menino escaleno para que o chão comece a exuberar no transfazimento da natureza. Esse poeta é um plantador de auroras que vive relvando trastes e cultivando borboletas que saboreiam margens e luares que comem árvores. Nesse exercício de replantação das coisas, para que as vingas vinguem, ele utiliza adubo de palavras viteladas, daquelas fresquinhas, acabadas de nascer até de lugares despróprios. Gravanha é uma delas, que segundo ele, dá para ouvir "nela um rumor de espinheiro com água". Aliás, água é o que não falta nos seus dizeres poéticos. Ele é um homem aquoso carregando um rio nas costas do que diz.

Manoel foi inventado pelo manoelês. Em seguida saiu de seu espojador e foi trafegar por essa grande manga que é um roçado feito mundo. Ficou conhecido para além da curva do vento e da testeira do horizonte. Isso depois que descobriu o ardimento das palavras no temperar dos dizeres. Seus olhos encardidos de sonhos querem apenas ver o avesso das coisas através da sedição das palavras. Quer apenas através da prosódia dos pássaros descobrir os voos antes das aves. Além disso ele professa um dialeto coisal, larval e pedral como primórdio do dialeto maior que é o manoelês onde o silêncio é líquido e suficienta outros.

Manoel diz que "caracol é uma solidão que anda na parede". Não se vai mais ao dicionário para olhar a definição desse termo para não enfeiá-lo. "Garça é um sombreamento de silêncios. (…) Passarinho é poeta de arrebol. (…) Poeta é um ente que lambe as palavras e depois se alucina. (…) Lobisomem é uma assombração que bebe leite. (…) O cágado é uma coisa sem margens". É por isso que ele ao se horizontar fica andorinhando longemente. Quando isso fica difícil ele começa a novembrar abelhas, o que é uma arte das mais difíceis. Só um poeta como Manoel é capaz de ver "a tarde correndo dos cachorros" e quanto mais inventa descobrimentos, seus desconhecimentos aumentam, isso desde a infância quando tinha a mania de encompridar rios.

Manoel de Barros não possui biografia, possui um palavreado que lhe biografa. É um ser humano prediletado pelas palavras. Se alimenta pelos ouvidos, se assombra pelos olhos e se derrama pela boca. É um homem atravessado pelos reclamos das coisas. Quando se veste de infinito, Manoel põe unhas nos nomes, encabresta verbos e penteia substantivos. Vive delírios frásicos a ponto de se perverter de castidades. Descobriu há muito tempo que as coisas se cansaram de serem vistas por pessoas razoáveis, e que palavras suculentas são aquelas que não pertencem ao cativeiro dos idiomas, nem estão aprisionadas nos porões dos dicionários. Ele sabe que o esplendor da manhã não se abre com faca. Manoel é um homem astroso e constelado, a escorrer verbalmente na indireção dos ventos. Esse poeta inventa tantos descobrimentos que nada lhe passa obscuro. Manoel nos abastece de insolidões.


FONTE: Jornal Diário do Nordeste - 09/07/13.


 

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