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  • Foto do escritorBatista de Lima

Devassando raízes


Batista de Lima



Quando voltei à Seriqueira, a sede me olhava pelos olhos tristes de um açude seco. Era outubro e isso era tudo. Outubro estava sem curva. O silêncio tumultuava o nada. Um desempenado homem, parado feito um toco, olhava para o que não via.

Era de tarde e isso era tudo. Era uma tarde sem fundo, parada numa espera petrificada. Árvores cadavéricas não tinham respostas para nada. Há tempos se alimentavam de perguntas envelhecidas. Era domingo e isso era tudo. O céu bem mais alto me via com olhos de não te ligo. A serra escondia seus olhos envergonhada de nudez. Nada me contava nada e isso era tudo. Se pelo menos aquele homem mexesse uma de suas asas seria sinal de vida.

Aquele homem turvo, pregado ao tosco toco, não era nada mas era o tudo que por ali jazia. Procurei entre as pedras tristes alguma palavra esquecida que me dissesse algo, mas nada escapara além daquele homem tosco ligado a um toco turvo.

Aquele homem era um verbo e isso era tudo. Dele poderia verter um caudal de vozes se não fosse apenas um toco continuado no cimo de outro toco. E assim fiquei árido de perguntas porque respostas não existiam. Estava ali na mais culminante das horas, quando os filhos da terra mais vicejam, mas nada se moveu no meu entorno. Tudo soturno à espera de minha voz rezante para carpir aquela touceira de ausências. Isso era tudo.

Poderia ser tudo não fosse um barulho que ouvi me seguindo com sons de coisas secas se arrastando no estorrico. Quando me virei, vislumbrei, na poeira, o braço do abandono pedindo socorro para escalar uma parede sem porta, que dava para uma capoeira, onde em eras priscas cultivavam palavras.

Para lá rumamos, e daquele chão, o vento havia varrido as inscrições do clã. Não dava, pois, para remendar a tarde se seus ferimentos eram tão fatais que nem sangravam de secos. Senti o amargo de seu sal que me buscava as entranhas querendo me transformar em mais um toco tosco e turvo.

Havia, no entanto, no quase fim da parede, uma escada que se abismava com o nada. Uma escada é um convite impresso nos seus degraus. E foi por isso que teve início o meu andar para o rumo que a escada dava. E quanto mais alto ficava, mais meus olhos se apoderavam de distâncias e cativavam paisagens. É tanto que lá no longe conquistado, havia uma serra com a cor dos olhos de uma ela. Olhos de serra longe, desassossego pendurado no horizonte.

Difícil é entender como, numa hora encrespada como essa, haja espaço para enganchar pensamentos memoriais. Além disso, aquela serra de existência duvidosa, ofuscando a luz remota da tarde que morria, podia ser apenas prenúncio da treva que viria.

Isso poderia ser tudo não tivesse naquela hora surgido, capengando de só, a lembrança do monturo ancestral, latejando ali por perto. Era um pequeno morro dos restos avoengos ali jogados. Talvez ali, no seu por debaixo, adormecessem respostas para este rosário de dúvidas. Foi por isso que comecei a escavar aquele borralho de cinzas e trecos em que a família se pôs, antes de construir suas ausências.

Ali estavam a sobra e a borra das gentes que secularam, roendo nos peitos da terra sustanças para os intestinos da fome. Estavam ali histórias escritas do limiar do alpendre aos contornos da alcova, que o vento esqueceu de arrastar. Era preciso agora escarafunchar coisas perdidas para que nelas eu encontrasse razões de estar ali.

Meu avô desperdiçado pulou de um copo furado embaixo, em que por décadas bebeu sua bicada, antes da refeição do dia. Seu olhar me conduziu à baixinha do nascente que seus olhos cavaram na serra, olhando se a chuva já vinha vindo. Um parafuso e um fuso passaram a trocar sopapos, discutindo quem era quem no reino que ali faliu.

Uma chaleira bem antiga, com inscrição posta nos fundos, vinha dali reclamando, que destinada a fazer chá, passou sua vida toda quase só café fazendo. Nesse fuzuê danado, daquele monturo saindo, quanto mais cavando ia, mais história se esvaía. Encontrei um tio meu, montado numa sela antiga, gritando entre os arreios, direitos de hierarquia. Um velho cordel me dizia que José de Sousa Leão tinha amor por Mariquinha sem o pai dela consentir.

Na devassa desse monturo, ainda encontrei se decompondo um velho caderno suicida, com palavras fora de uso, falando de coisas sem nexo. Tinha algumas profecias ligando secas e chuvas, mas principalmente diziam da morte daquele sítio, pelo abandono dos donos. Havia cartas de São Paulo, a banda da Bíblia Sagrada com o Pentateuco salvado. Alguns frasquinhos de extrato, desses que moça casadoira usa em festas padroeiras. Alguns panos de mulher séria, combinações e anáguas, e um pilãozinho de pilar tempero para cosido de carne fresca. Aquele monturo sem fim era a vida que ali restava, era um mergulho no tempo num caminho sem chegada.

Naquele monturo revirado, deu para ouvir berros de vacas, sentir na canela esquerda o coice do jumento "cartucho" e sentir o cheiro do café torrado, pilado com rapadura. A fumaça do engenho em julho, soprada da chaminé, trazia batida e alfenim, garapa doce e mel queimado. Deu para ver ainda, pelos olhos da memória, riachos botando água, em grandes chuvas de abril, e peixes subindo os córregos com ânsias de desovar. Pulou do monturo uma tia, com artes de tecer redes, dizendo que tecer no tear era o mesmo que tecer poemas com versos metrificados.

Ficamos assim conversando, com sua presença estando longe, e o açude seco se encheu, outubro virou janeiro, o silêncio virou barulho e aquele homem seco saiu de cima do toco, tirou do bolso uma rima que no poema faltava.


FONTE: Jornal Diário do Nordeste - 12/07/2016.


 

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