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  • Foto do escritorBatista de Lima

Desvelo


Batista de Lima


Tenho estado atento ao pé de tudo. Não eu, mas nós que eu sou. Se fosse apenas um, não daria conta de tantos cantos e recantos encantados. Um dos que sou planta e produz alimentos. Os outros precisam comer, nutrir-se do que a terra pode ofertar. Plantar milho e transcorrer captando o cheiro do parto das espigas. Agricultar é preciso entre frutas e verduras. Uma goiaba orvalhada apanhada do pé é uma hóstia que a goiabeira oferta. Um mamão colhido maduro no mamoeiro saltita como os seios da mulher sonhada. O mesmo acontece com a manga feita para ser mamada. O arrozal dourado é a terra parindo fortunas. O feijão só vale enquanto flor, ou verde na vargem, ou cheirando na panela.

O outro de nós que sou paira alheio às dores do entorno. O mundo se acaba e ele sobrevive só e cria musas para suprir solidões, e lê os clássicos para sobreviver entre muitos. Quando nos reunimos, todos se conhecem. O engenheiro e um cantor de ópera, um fauno e um faquir, todos de mãos dadas com o agricultor de versos e hortaliças. De dia ele planta couves e à noite conta estrelas no céu. Quando cansa, dorme de rede e instaura alpendres na vastidão dos sonhos. Quando nos reunimos todos que sou, quase nada somos, porque o plantio dos sonhos precisa do adubo da sorte. A colheita dos dias precisa da bênção da paz que não se sabe onde está, se no cofre das almas ou no altar do sacrifício.

Ao pé de tudo que sempre sonho, um baralho de perguntas se encomprida. Que faço com tantos braços se de pernas sou tão fraco? Onde boto as promessas se o dia é tão curto? Para que tanta espera se tão curto é o viver? Para que um longo amor se o instante não ajuda? Entre perguntas, no entanto, eu me respondo. Tudo é abismo postado antes da pele. Tudo é azul que encosta na serra mas que pula para outra serra quando tento pegá-lo com a mão. É uma estrada reta, travessia e travessura.

De todos que sou há um que menos conheço. Ele se esconde bem por trás dessa multidão que carrego. Ele não se mostra e raramente o presencio. Não sei se esse que escondo e que de mim se esconde, é um santo ou um bandido. Não sei se me escutará na hora culminante. Esse que menos conheço é que me acorrenta de precauções por não saber seu poder de reagir, sua face escondida por trás de sombras e perguntas. Tudo o que me dão já vem de segunda mão. Até a mais nova palavra que ouço traz a morte de uso anterior, traz o pedido de uma ressurreição. Toda palavra já traz o hálito dos fantasmas. Tentei criar uma palavra nova, novíssima, mas as letras que usei trouxeram o riso macabro de multidões que as utilizaram. Será que nada é novo? Será que estar ao pé de tudo é estar ao pé de nada?

Amanhã será um novo dia de coisas velhas. O sol nascerá e ai dele se não nascer. Cumprirá seu roteiro montado na velhice dos tempos. Nada de novo moverá inversões. Terei amanhã bastante tempo para desenrolar fios e desatar nós. Primeiro vou procurar uma ponta dos fios como forma de chegar à que se escondeu. Amanhã é uma estação que não nos espera. Não adianta correr em sua busca se o presente não nos fizer companhia. Amanhã é uma afronta ao tempo. Tem, no entanto, um eu que não tem medo do tempo. Mesmo o tempo sendo agente da morte, assim meio pistoleiro.

Acontece que até o sol, tão forte astro, superastro super, morre diariamente e eu que só uma vez morrerei, por que correr com medo da morte. Tenho certeza de que, é tão bom do outro lado que ninguém volta para dizer, pois seria um suicídio geral, todo mundo querendo ir para o desfrute. Interessante é que esse eu que pensa essas coisas vem encabrestar meus avós que o tempo tanto desgastou. Lembro-me de minha avó quando no altar pedia a Deus pelas tias, pelos tios, pelos netos e depois torrava a tarde no milho que debulhava. Minha mãe na cozinha fazia planos, meu pai no alpendre plantava rumos, meu avô perguntava ao horizonte onde andava o gado que não teve. E um passarinho me dava lições de voo com a palmatória das asas.

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(CONTINUAÇÃO DO ARTIGO RECEBIDA POR E-MAIL)

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Um dos que sou aprendeu com o pai a arte de desconfiar, e com a mãe, a arte de ter medo. Por isso acredito no inferno e nas delícias do paraíso. Com os passarinhos aprendi a voar sem sair do chão e até cantar nos momentos tristes. Com a chuva no telhado conheci a música do quase dormindo, e com o trovão vi o perigo da guerra, e com o relâmpago a explosão das aeronaves. Mas um dia meu pai interrogou-me sobre o futuro. Respondi-lhe que o amanhã é um adiamento feito sombra com sol atrás. Suas crinas prendem sonhos que penderei para não colher. Vão quimeras cavalgando, me negando a mão que salva, mas estas palavras toscas eu amarro todas elas para a precisão maior. Meu avô foi que me ensinou a construir no caminho da ida, a estrada da volta.

Um dos que sou preserva. Guarda peixes em piracema e tigelas de mel de cana. Festeja o santo padroeiro e desfila em procissões. Está sempre olhando para trás como forma de ir para a frente. É o que mais ama, porque amar é uma forma de preservar. O amor é aquela joia mais preciosa que se guarda no mais escondido dos cofres. Um desses cofres é a memória. Daí que destruímos apenas o que não amamos. Esse dos que sou vez por outra vai à infância e volta. Mergulha tão fundo que chega à infância do pai, da mãe e dos avós. Certa vez afoitou-se tanto no seu mergulho que chegou à infância do mundo. Foi aí que viu a infância do mundo em coisas que não avistava. Uma borboleta, uma flor de maracujá, um pássaro no ninho e o cheiro do manjericão trazem a infância do mundo.

Agora esse desvelo que me acomete vem me dizer que não estou ao pé de tudo. Mas por não estar termino por estar. Não preciso amarrar essas coisas todas pois elas volteiam aqui por perto. Até dormindo elas me sonham. Entretanto tenho sido recriminado pela lua, pela água e pelo fogo. Seus apelos não freiam todos esses que sou. Essa multidão que carrego e me curva, todo esse peso do mundo, protesta contra esse medo de olhar para trás como se eu fosse virar estátua de sal. Também protesta por não olhar para a frente com medo de um desconhecido que já conheço. Conheço tanto, tanto que evito reconhecer. Por isso que tem um dos que sou que fustiga essa inércia e me manda bailar, jogar futebol, viajar para Shangrilá, tomar vinho tinto, andar descalço na praia, tomar banho de chuva e aprender a escrever melhor. Um dos que sou pede para parar por aqui.


FONTE: Jornal Diário do Nordeste - 18/06/13.


 

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