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  • Foto do escritorBatista de Lima

Derinha e Doquinha


Batista de Lima


Está aí um nome propício para uma dupla sertaneja. E realmente é. Não dupla que canta e toca, mas dois sertanejos de histórias parecidas e sonhos comuns. Os dois foram batizados com o nome de Raimundo, depois mudaram para essas alcunhas afetivas que falam mais do coração que da razão. Trabalharam a terra, e cada um casou-se duas vezes. Ambos eram devotos de São Sebastião. Tiveram muitos filhos, criaram gado, produziram arroz e habitaram o mesmo chão, na mesma época. Eram amigos. Tudo isso remete a uma dupla sertaneja.

Esses dois personagens ficaram agora mais conhecidos a partir da publicação do livro "Dois homens, duas histórias - Muitas lições", de autoria de Nenenzinha Mangueira. São 260 páginas, numa publicação da Editora Premius. A autora é filha do personagem Derinha e nora do Doquinha. Educadora, essa escritora no momento é Secretária de Educação do Município de Lavras da Mangabeira. É, também, juntamente com seu marido, João Nonato Vieira (João Bosco), proprietária do Colégio Dom Quintino, situado nesta capital no bairro Quintino Cunha.

Esse Dom Quintino que dá nome ao Colégio é uma homenagem ao primeiro bispo que dirigiu a diocese do Crato. Esse bispo quando viajava pela região, em serviços religiosos, ora se hospedava na casa de um, ora na casa do outro. Era amigo dos dois a tal ponto que esses senhores quando iam de Mangabeira ao Crato retribuíam a gentileza e visitavam o bispo. Isso demonstra a profunda religiosidade da dupla. É tanto que desde o mais antigo ancestral de Derinha havia a tradição de sua família, Mangueira, ser guardiã da igreja, guardar as chaves e zelar pela limpeza. Foi nesse mundo de religiosidade que as duas famílias perduraram no tempo e ainda hoje são exemplos de praticantes católicos.

Ali, naquela vila, organizaram as quermesses durante as nove noites de novenas em homenagem ao Santo padroeiro. Do dia 11 a 20 de janeiro barracas eram armadas em frente à igreja e começavam as promoções para angariar rendas para manutenção do templo. Ao lado das barracas instalava-se o "Parque São Severino para homem, mulher e menino". Os dois partidos para os festejos levavam geralmente os nomes de Azul e Encarnado. Houve algumas oportunidades em que vieram a ser: Rosa e Saudade, teve ainda Paz e União, Jangadeiro e Guarani, Cedro e Várzea alegre.

Nessa festa do padroeiro, em que os dois se envolviam até como dirigentes das promoções, estabelecia-se uma saudável disputa para na apuração final verificar qual partido mais arrecadara. Nas barracas de cada partido havia leilões de produtos da terra, e moças enfeitadas de ciganas, vendendo bilhetes de rifas. E o bom eram as músicas criadas para animar as promoções. Eram paródias em cima de sucessos musicais da época. Há letras que ainda hoje são relembradas: "Azul, azul / da cor do céu onde Deus mora / e do manto que cobriu Nossa Senhora./ Da praça do norte ao sul / quem manda é o partido azul". Do encarnado vinha a réplica: "Não há negar, não há / que o encarnado vai ganhar".

O interessante é que Raimundo de Souza Mangueira, Derinha Mangueira, tornou-se Derinha (1909 - 1994), já Raimundo Nonato Vieira, Doquinha dos Torrões, tornou-se Doquinha (1894 - 1979). O primeiro, mais urbano, elegeu-se vereador de Lavras da Mangabeira pelo PSD, tendo exercido o mandato de 1947 a 1951, tendo sido constituinte municipal. Derinha também foi Juiz de casamento civil de 1951 a 1959 além de sub-delegado do distrito de Mangabeira de 1959 a 1976. Enquanto isso, o Doquinha se destacava como pecuarista e produtor agrícola.

O livro traz muita memória, não ficando apenas nos personagens retratados. É, no entanto, bom lembrar fatos inusitados que são narrados pela autora, principalmente quando trata do segundo casamento de seu pai, com sua mãe ainda hoje viva e saudável, e que por ocasião das núpcias com o viúvo Derinha, já maduro, só possuía 14 anos de idade. Muitas vezes o marido chegava em casa, cansado do trabalho, e a esposa, menina, estava brincando de boneca com amigas adolescentes.

É tanto que certa vez chegou inocentemente a retalhar uma camisa de seda do marido para confeccionar vestimentas para suas bonecas.

O livro de Nenenzinha Mangueira não é apenas um tributo a seu pai e a seu sogro. É também uma pesquisa em torno da memória de sua terra natal, Mangabeira, distrito de Lavras, com uma população de mais de cinco mil habitantes. É um documento memorial que traz fatos desde a fundação da capela de São Sebastião, lá no século XIX. Há uma fotografia, numa página central, da festa do Padroeiro, de 1911, que por si só vale por todo o livro. As vestes das pessoas, a presença masculina na praça, mostrando o recato da mulher. A autora consegue com sua palavra fácil, prender a atenção do leitor, levando-o a ler o livro inteiro como quem percorre as trilhas daquele paraíso que ela nos oferta.


FONTE: Jornal Diário do Nordeste - 15/10/13.


 

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