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Da poesia ao poema

Batista de Lima


No mundo da linguagem, é a poesia que pulsa com mais ritmo. Assim ela consegue harmonia no universo das imagens, mesmo concentrada nos domínios do poema. O que importa muitas vezes é esse percurso que as imagens executam entre a poesia e o poema. De uns ela exige suor e lágrimas; de outros, arrebatamento e transfiguração. Por isso que uns defendem a necessidade de inspiração e outros apelam para a transpiração. Certo é que engenho e arte são necessários para transpor essa distância entre abismo e pele. Os que se salvam desse trânsito são chamados de poetas. São os que afloram da difícil batalha entre o sentir e o pensar.

Aqueles que sentem e libertam seu interior fazem uma catarse que alivia tensões. São os líricos, aqueles que geralmente retornam a uma infância que pode ser própria, ou a infância das coisas que o cercam e o afetam, como em um retorno à terra natal. Nesses poetas a falta que se lhes acomete é matéria-prima para o poético. Um paraíso perdido é muito propício à poesia. A voz dessa poesia é o poema. O poema é como uma concha em que a poesia é o molusco que lhe habita na construção. O poema é, pois, uma construção para que a poesia habite. Por isso há uns que constroem uma cabana, outros constroem um palácio. Ainda há uns que nada constroem. Aí está a diferença entre poeta e prosador.

O poema é uma construção verbal, e por ser feito de palavras, dificilmente revela o sentir do poeta por completo. É essa limitação da língua na transmissão do sentir que leva o poeta a criar novas significações para as palavras. Utilizar palavras com seu sentido dicionarizado é fazer prosa e não poesia. Poesia é metáfora, é figuração. É a palavra virada ao avesso para produzir um significado novo. O poeta é um criador de significados novos para as palavras, ele não é um repetidor do que já se sabe. A primeira atitude do poeta diante da palavra é dar-lhe liberdade total. A palavra libertada é produtiva, ela se abre toda em significações novas. Isso é poesia.

O poema precisa do leitor. Entretanto não é fácil ser leitor de poemas. Ele precisa procurar-se no poema, e certamente vai encontrar-se porque ele leva em si o que procura. Por isso que ao procurar nas coisas a infância delas, ele termina por encontrar sua própria infância. Esse nosso mergulho na intimidade das coisas vai mostrar que há um abismo de distância delas para seus nomes. Há uma infinidade de arbitrariedades entre as palavras e as coisas. Cabe ao poeta tentar sempre diminuir essa distância instalada. O poeta é um mediador que encurta essa distância entre coisas e palavras.

Nos dias atuais o ser humano se apresenta desabitado de futuro. Essa ideia de colocar o futuro no agora termina por prejudicar o presente. O presente não funciona sem futuro. Só a poesia que no momento está conseguindo preservar o futuro. Isso porque ela prospecta no passado as pilastras de sustentação do agora e do depois. No passado é onde lateja a infância do mundo e é lá onde o poeta se abastece das respostas para o manancial de suas perguntas. Os códigos atuais são grosseiros porque são arbitrários. É preciso procurar na raiz da linguagem a essência dos significados. Só os poetas têm o fôlego necessário para essa arqueologia.

Os poemas são os suores da linguagem. Nesses suores vêm as substâncias das coisas que são a verdadeira mina da poesia. O poeta, como arqueólogo das substâncias das coisas, é que ausculta o pulsar dos seres nas suas origens. Para surpresa dele, ao encontrar sua palavra mais ou menos adequada, descobre que já está possuído por ela, e comprova para si que é um feito linguístico. Para isso não adianta forçar o encontro com a palavra certa. Ela procura o poeta. A palavra conquista o seu usuário, nomeia as pessoas certas. Para ser poeta é preciso deixar-se conquistar por esse trio de excelência: palavra, poema e poesia. Daí que é acertado dizer que o poeta nasce feito.

Poeta é um ser escolhido pela poesia para colocar ouvidos e boca no poema. Se não for escolhido pela poesia não adianta querer ser poeta. É melhor ser orador. O poeta transforma as palavras em brinquedos verbais, e depois de organizá-los em outros brinquedos novos, termina por confeccionar o poema. É como uma criança que vai colando pedaços de papel para formar um objeto lúdico. Assim, a magia das palavras só brota, quando o poeta procura nas raízes delas uma energia ali guardada. Por isso que ao emendá-las umas às outras, surge o verso, como se fosse uma instalação elétrica de alta voltagem.

Nessas horas de instalação de versos, o poeta precisa confiar na linguagem. Precisa sentir-se confortável e confiante de sua habilidade para adentrar o desconhecido mundo interior das palavras, que é também seu mundo interior. Para facilitar seu trabalho de prospecção no reino verbal, é necessário ao poeta descobrir as felicidades das palavras. Elas precisam sorrir nos versos, gargalhar nas estrofes e cantar nos poemas. A poesia se nega à companhia de palavras infelizes. O poeta precisa, pois, fazer mesuras nas palavras, acariciá-las, descobrir nelas o ponto em que pulsam seus melhores prazeres para que de mãos dadas elas cantem e cantem muito. Afinal poesia é ritmo, poesia é música e muita música.


FONTE: Jornal Diário do Nordeste - 07/04/15.


 

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