top of page
  • Foto do escritorBatista de Lima

Da felicidade das palavras

Batista de Lima


A leitura de alguns escritores sempre revela suas preferências verbais. Afinal palavras são como filhos, gostamos de todos mas sempre há preferências. Francisco Carvalho cita muito "Deus", "alfambra", "caverna", "montanha", "entranha" e "noite". Aurélio Buarque de Holanda, que convivia com centenas de milhares de palavras, tinha preferência especial por "alvorada".

Em tempos de "jabulani" e "vuvuzela", vêm-nos à mente outras palavras que de uma forma ou de outra se nos apresentaram felizes ou felizes nos fazem ou fizeram. Meu primeiro alumbramento lembrado, com palavra, foi quando conheci "absolutamente" e com ela tive namoro por tempos adolescidos. Depois a geografia da escola me trouxe outras também belas e misteriosas como "Bogotá", "Bora Bora", "Uberlândia" e "Fuega". Mas distantes como eram não nos encontramos e nos perdemos em outros braços.

Essa afeição por palavras me levou a "jabuticaba", passou por "cabograma" e "convescote", e encalhou por uns tempos nos braços de "mangaratiba". Foi aí que deduzi ter uma preferência por palavras grandes, dessas de pernas longas, vestidas de muitas sílabas. É evidente que flertei com "sopé", baixinha e gordinha, e que jamais esqueci do continente que me conteve e que me veio com o nome de "mãe", acompanhado bem de perto por um farol bem aceso que surgiu com o nome de "pai". Por isso que não é o tamanho que mede a grandeza do nome, mas a metragem por cordas do coração.

Assim descobri que as palavras do lar, do repouso, do aconchego são preferencialmente dissilábicas. Casa, cama, sono, sonho, rede, mesa, café, colchão, fronha, sexo, sala, canto, cofre, fogão, lanche, telha, bule, janta, porta, beijo, quarto, pote, sopa, homem, mulher, bebê, parto, suco, água, vinho, carne, peixe, frango, rancho, rango, fogo, brasa, balde, boldo, filho, papai, mamãe, avô, avó, sofá, milho, feijão, arroz, leite, vaca e touro. Parece que essas palavras que nos ligam e se ligam por afeto, ternura e sangue, ficam mais fortes se mais curtas se tornam. Parece que quanto mais se encurtam de letras, mais aumentam de conteúdos ternos: pai, mãe, vô, vó, Zé, cê, dor, ai, oh, sim, é, já, vou, ó.

A leitura de alguns escritores sempre revela suas preferências verbais. Afinal palavras são como filhos, gostamos de todos mas sempre há preferências. Francisco Carvalho cita muito "Deus", "alfambra", "caverna", "montanha", "entranha" e "noite". Aurélio Buarque de Holanda, que convivia com centenas de milhares de palavras, tinha preferência especial por "alvorada". Para ele, é a mais bela entre todas as palavras. Para Mário Quintana a mais sensual entre todas é "voluptuosidade". De minha parte, considero "maravilha" uma das mais enigmáticas palavras. Tem o mistério do "mar", tem a presença da "ilha" e ainda traz nome de mulher, "Mara".

A leitura dos poetas Carlos Drumond de Andrade, João Cabral de Melo Neto e Carlos Nejar é um caminhar entre pedras. São, no entanto, pedras com raízes, tipo dentes da terra. São pedras que muito mexidas expõem nervos e tresandam dores acumuladas. Já o poeta maldito, arcano do simbolismo francês, Charles Baudelaire, tem uma preferência especial pela palavra "vasto". Para ele a vastidão da poesia e do todo que nos compõe vai do vasto olhar ao vasto pensamento com estalagem garantida na vastidão da linguagem. Por falar em "estalagem", essa é uma das amigas de Cervantes no seu "Dom Quixote", além de "encantamento", "sonho", "cavaleiro", "escudeiro" e "cavalaria". Esse clássico emprestou palavras a muitos escritores da modernidade.

Há, no entanto, palavras que boiam na superfície da linguagem, outras se acomodam nos subterrâneos dos seres. Quando lemos Freud é como que mergulhamos em regiões sombrias onde se esquivam "inconsciente", "neurose", "histeria", "libido" e "paranóia". O mesmo existe com relação à intimidade das coisas, onde jazem ambientes concretos mas que de tão íntimos nos parecem secretos. É o caso de "alcova", "nicho", "caverna", "furna", "venustério", "masmorra", "porão", "sótão", "semente", "miolo" e "tutano". São palavras bem próximas que distanciam as coisas que nomeiam."Cérebro", por exemplo é uma delas, talvez a mais próxima e ao mesmo tempo a mais desconhecida.

A nossa luta com as palavras que amamos às vezes tropeça com aquelas a que temos ojeriza. É o caso, por exemplo, de "umbigo". "Umbigo" é palavra sem graça, rabugenta, nascida feia para representar algo tão bonito que deveria se chamar "ventarola". "Axila" também é imprópria e ficaria melhor se substituisse "espirro". É pena que a gente não possa trocar o significado de certas palavras para que elas fiquem mais felizes na sua existência. Seria um trabalho de "motivação", para acabar com tanta "arbitrariedade" linguística. As palavras passariam a ficar bem mais próximas das coisas, como: "chuva", "xixi", "vento", "uivo", "ar", "forca" e "ui".

As palavras e as coisas, os nomes e as pessoas às vezes possuem uma relação que os distancia ou aproxima. Por isso que "sousa leão" é nome de bolo fofo e "luís felipe" é nome de bolo mais baixo. "Loló" é apelido de moça gorda, e "Lili" é alcunha de magricela. Olívia Palito jamais se apresentará gorda. Entretanto, quando a namorada diz para os pais que lhes vai apresentar o "namoradinho", nem sempre significa que o rapaz é pequenino. O diminutivo afetivo não é medido pelo tamanho que se vê com os olhos mas pelas dimenções que o coração estabelece.

Importante, nisso tudo, é a seleção que se faz necessária quando palavras emitimos no contato com o outro. Afinal, é muito difícil em um diálogo, encobrirmos o que trava ou destrava o coração. Nunca a fala da manhã de segunda-feira vem com palavras felizes como a do sábado à noite. Nunca as palavras da saúde são as mesmas da doença. O vocabulário dos jovens não é o mesmo do linguajar dos velhos. Essas distâncias, porém, podem ser encurtadas quando nossa seleção vocabular vem de respeitar as palavras que jamais são culpadas de nosso estado de espírito. Palavras são como pessoas, por mais infelizes que sejam, podemos proporcionalizar-lhes momentos de felicidade.


jbatista@unifor.br

06/07/10.

 

1 visualização0 comentário

Posts recentes

Ver tudo

Comments


bottom of page