top of page
  • Foto do escritorBatista de Lima

Crônicas culinárias

Batista de Lima




Gabriela Salamanca é o pseudônimo com que Fernanda Carvalho de Almeida concorreu ao Prêmio de Literatura Unifor de 2015 e ganhou. O título de seu livro de crônicas é "Tortas de Saudade", e não poderia ser outro. Ela mistura culinária com escritura e produz uma textura metafórica recheada de imaginação e sensibilidade. Há uma ternura que transcende de suas palavras, como de alguém que observa seu entorno não apenas com os olhos, mas com a nervura, com o coração, com os poros do corpo e aqueles da alma, que não nos são visíveis.

Fernanda é psicóloga e faz a terapia das coisas antes de vasculhar as gentes. Consegue resgatar a fala autêntica das coisas como se pessoas fossem. Daí que sua torta, para se tornar literária, vem com "500g de saudade"; 300g de espanto; 1 amor desengonçado; 1 colher de sopa de contentamento; raspas de melancolia; 3 colheres de sopa de improviso". A partir desses ingredientes é só juntar espanto, contentamento e improviso, e misturá-los em um recipiente por alguns minutos e se preparar para as sensações brotadas. Essas sensações é que dão o rumo de sua escritura. Sua "Festa de Babete" pode começar com um amor desengonçado e vir recheada de raspas de melancolia, mas no final vai dar tudo certo.

A explicação que essa cronista dá para a sua criação é de que no princípio percebeu que não escrevia um livro, mas escrevia tortas. Ao mesmo tempo deve ter percebido que não fazia tortas, mas escrevia um livro. Essa ligação da escritura com a culinária é decorrente do fato de que em sua família, há uma tradição de que as mulheres são excelentes cozinheiras e, entre elas, saiu Fernanda como exímia fiadora de palavras, tecedora de frases que não perdem o sabor dos saberes tradicionais da família. Enquanto suas parentas nutrem o corpo com seus acepipes, ela refestela os espíritos com suas crônicas que não têm similares. Talvez alguma intertextualidade de raspão da eterna Clarice Lispector.

Fernanda Carvalho de Almeida, atualmente, é mestranda em Psicologia na Universidade Federal do Ceará e pesquisa o fenômeno selfie no contexto da sociedade de consumo. Deve, portanto, a partir de um viés fenomenológico na sua problemática de pesquisa, talvez colocar, na mesma trempe, Narciso e Eco numa perspectiva metrossexual, ou até mesmo um olhar de trivela sobre Cronos, contanto que o resultado final possa ser em vez de saudades tortas, tortas de saudade. Prognósticos à parte, que se leia com vagar sua Crônica "Reminiscência", que abre a coletânea premiada. Nela, "as coisas fantásticas acontecem sem alarde", mas as pequenas coisas levam a vida a navegar sem âncora.

Uma dessas coisas fantásticas é Deus tomar chá sempre às 17h e 21 minutos, quando poderia tomar café e ser em outra hora. Por isso que ela diz: "Existe Deus e existe poesia. Entender um é entender o outro". Essa atmosfera, ela imprime em outras crônicas quando transfigura alguns comportamentos simples em atos poéticos. E isso ocorre com pequenos seres como borboletas, beija-flores e gatos. Até de um pé de jacarandá transborda uma luz que só mestres da escrita conseguem imprimir. Mas é na imersão que faz na existência dos gatos que essa jovem escritora se impõe como criadora de impressionantes imagens. Conhece tudo sobre gatos.

Mais que gatos, beija-flores e borboletas, Fernanda Carvalho conhece pessoas. Necessário é esse conhecimento para quem enveredou pela profissão de psicóloga. Esse pendor fica claro na crônica "A mais linda história de amor". No primeiro parágrafo ela já sequestra o leitor, quando afirma: "um dia nublado, para mim, já é uma declaração de amor". Esse "nublado" não se refere apenas às nuvens pesadas que desfilam no céu, refere-se também às incertezas e dúvidas que embaraçam a mente do espectador. Daí que a velhinha que adentra a emergência do hospital é um céu nublado de subjetividades que só clareiam um pouco quando com toda a ternura do mundo pega a mão do marido e a segura como um alento e uma segurança sem fim.

É impossível a um leitor de sensibilidade não encher os olhos de lágrimas ao ler essa história de amor. A cena em si talvez não tenha sido tão intensa, mas a forma como está descrita a torna pungente e terna. A autora terminou fazendo parte do que ali aconteceu. Aquela mão estirada da velhinha convalescente encontrou também um apoio imensurável na mão do coração da cronista observadora que transpõe a mesma atmosfera para a subjetividade do leitor. É aí que nos faz lembrar alguns momentos epifânicos de Clarice Lispector ao extrair luzes de momentos inusitados da existência humana. É aí que o leitor conclui que Fernanda Carvalho de Almeida já se fez escritora.

Por fim, torna-se patente a importância do Prêmio Unifor de Literatura, ao nos por em contato com escritores como Fernanda, que se não fora essa promoção, talvez ficasse desconhecida. Publicar essa coletânea de crônicas imperdíveis é, além de brindar os leitores de bom gosto, resgatar do anonimato uma escritora que de tão brilhante dá a impressão de que há muito vem escrevendo livros. Dá até a impressão de que seja uma senhora escritora madura que em avançada idade tem uma visão de mundo já com anos de observações e experiências. A Universidade de Fortaleza, Unifor, acaba, portanto, de apresentar ao público a revelação literária de 2015, a cronista Fernanda Carvalho de Almeida.


FONTE: Jornal Diário do Nordeste - 22/03/2016.


 

2 visualizações0 comentário

Posts recentes

Ver tudo

Comments


bottom of page