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Conversa no Alto do Cruzeiro

Batista de Lima


Sentados no Alto do Cruzeiro perguntávamos por que o Picoto Alto possuía esse outro nome. Era uma manhã que se perdera de seu dia e que tomava banho nua de nuvem, no espelho do açude lá embaixo, num espreguiçar de peixes. A serra nos olhava depressiva e minha avó torrava café com lembranças. As garças chegavam com toalhas brancas organizando o banquete para os olhos. Meu avô buscando palavras nas linhas das mãos, via a poesia brincando de rodas.

Naquele dia eu havia amanhecido com insuficiência verbal, uma dor que vinha sem donde e tapava porteiras. A esperança havia dito: "vou ali e já volto", e não voltou. Disseram que muitos rios de janeiro levaram águas de março e a esperança foi nadando. Minha ouvinte mais falava, pois amanheceu de janelas abertas, não foi à missa para não ter de fechar as portas, não ter de acordar vestidos, nem tirar o sono dos sapatos. Enquanto isso prometi não mais fazer discursos nos cemitérios. Os mortos nunca prestam atenção, não batem palmas nem agradecem. Rezarei aos vivos, principalmente aos que moram longe. Daí que quando daqui rezei por ela, ela ouviu de Bogotá. A outra ouviu de Beirute e uma terceira, não sei de onde.

Daqui de cima vislumbramos o velho Rufino com os bolsos repletos de histórias lampi-ônicas. Ao lado dele, Dona Margarida, balançando suas margens flácidas. Meu tio fugiu para São Paulo, seguindo a direção das alvoradas, e deixou o pai tão capiongo que só teve costas para o nascente e nunca mais assistiu ao quebrar da barra. Ano passado em Sipaúbas a Sexta-feira da Paixão foi cair em um domingo de janeiro quando seu Elias trouxe a morte na lua da cela de um cavalo baio. No outro dia chegou da Capital, o corpo da minha avó. Em Sipaúbas todos são iguais perante a água, menos Luís Preto que nunca tomou banho e meu bisavô que na vida inteira só três banhos tomou, um para cada dos três casamentos.

De cima desta pedra, coroa deste alto morro, dá para avistar a fumaça dos antigos engenhos que em vez de rapaduras produzem lembranças e açudes de lágrimas. Mundoca do Sapé tanto chorou que o açude arrombou-se em 55 e continua sangrando. Os morcegos movendo almanjarras, os cupins festejando a safra e as aranhas tecendo surrões para armazenagem de nossas dores botam engenhos para funcionar. Lá na serra em frente, um boi pasta uma nesga de nuvem que veio beijar a terra. Mais um pouco à frente, Severino Belo costura o cotidiano com os argumentos da tarde. Não é possível concerto de tanajuras se o inverno não prometer presença. Se a curimatã está ovada, o riacho ronca nas suas guelras e as panelas recusam seu cozinhamento. Piracema é povoamento da solidão das águas.

Quando o rapaz do censo chegou, veio saber qual a maior produção do vale. Cada casa respondeu: "_ Menino". Ele trouxe papéis e lápis para contar gente. Veio montado numa palavra guia e um lote de outras. Todo mundo ficou dizendo: "absolutamente". O rapaz do censo mirou-se no luar, luando, e mergulhou nos olhos de Marina. Levou as pessoas em números e deixou semente na terra. Nos muitos aléns que dali existiam nasceu uma briga que virou guerra e levaram um filho de Sula que era bom em queda de braço, devolveram-no em um envelope lacrado. Quando a seca chegou, nós mastigávamos esperanças mortas e os relâmpagos encabrestados se soltaram das amarras e pularam a cerca da nação vizinha. Por aqui a caatinga fuma em coivaras, folhas secas de moitas suicidadas. É uma despedida em cinza inscrita no firmamento.

Um dia chegou o rádio, no meio de uma carga de mudanças. Trouxe em balbucios estranhos, manias de encurtar limites. O horizonte foi embora sem pedir licença. A inocência adolesceu, a velhice se tornou mais jovem. Foi então que criaram a escola da tarde com a professora magra. Levávamos cadeiras na cabeça, bolos nas mãos. As tardes ficaram longas entre o "A" e o "B". Na chegada ao "C" já não havia esperança de salvação. A enxada puxava pela mão direita, o livro me arrastava pela esquerda. Tudo isso trouxe São Paulo para mais perto e uma vontade de ser ajudante de caminhão para conhecer o Brasil que o livro trazia escrito mas que eu não via de mesmo. De cima de uma carrada de caminhão eu viria o Brasil de cima para baixo. Perdeu-se entre letras o ajudante de caminhão.

O engenho no entanto não se perdeu. Ele botou poesia no jeito de dobrar esquinas e a marca de cento e vinte na glicose do sangue. E vai sempre se arrastando como galhos secos que nos acompanham, isso depois que deixou de moer, que se aposentou e ficou mirando um canavial que se foi. Entretanto o chapéu velho, guardado no armador, retém pingos de antigas tibornas, pedindo atenção da mesa que continua viva a pulsante coração da casa. Que vida pão-de-ló era aquela, tapiocando manhãs, atravessando tardes de queijo e rapadura.

Agora a vida, essa mulher deserta, veste roupas de crepúsculo e as coisas não lhe ouvem mais. As coisas são ilhas afogadas que se perderam na indecisão do entardecer ou devastadas pela volúpia da noite. Uma dúvida nos atormenta dessas alturas: será que nossa via sacra só tem estações de perguntas? Ou são as ruínas do outono que nos pesam nos costados? Esses ombros desabados, essa aurora que perdeu os braços, esse orvalho que é apenas o suor da noite, essas esperas interrompidas, tudo nos remete a ficarmos dentro do corpo, esse ermo que carregamos. Estamos rumando para semente e nossas mães se foram levando os pássaros que nos podiam festejar.

Agora estamos aqui namorados carregados de ilusões. Um perscrutando o outro. Desde a mais tenra inocência nos amamos. Por isso essa saudade da pureza. Essa saudade de tantas riquezas íntimas, algumas disperdiçadas. Estamos aqui quase quite com a vida, com os dias idos e vividos. Mas essa grande saudade do mundo nos diz que não fomos completos. Não me deste o mote completo, não procurei entender todos os teus contornos. Agora aqui estamos a cismar nossas incompletudes de cima deste morro sem entender porque não ouvimos tudo isso que vemos daqui, só porque nos desconhecemos . Mesmo assim, uns te chamam "Palavra" eu te chamo "Companheira", meu lado fiel e recluso, minha porta aberta por onde posso entrar, mas principalmente por onde posso sair dessa construção enorme que é a vida.


FONTE: Jornal Diário do Nordeste - 07/02/12.


 

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