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Consertam-se palavras

Batista de Lima


Odilon era um fundador. Fundava esperas onde não havia mais jeito. Fazia mágica para o Sol nascer numa noite desestrelada. Costumava visitar as árvores, as flores e os frutos. Acompanhava o crescimento deles, anotando datas e mudanças. Uma laranja amadurecida tinha sua biografia escrita nos seus cadernos, desde a semente que a gerou. Mas aquela semente também tivera sua infância vasculhada. Um dia resolveu fundar a história da velha mesa da casa do avô. Conseguiu navegar na sua história até chegar ao tronco da árvore abatida.

Quando Odilon cansou das coisas, voltou-se para os nomes das coisas. Começou a vasculhar substantivos, numa ânsia de mergulhar sentidos e encontrar motivações. Descobriu que havia palavras profundamente tristes por não serem bem casadas com as coisas que nominavam. Por outro lado, verificou que havia palavras muito felizes, permanentemente sorridentes, por se ajustarem perfeitamente às coisas que representavam. Foi por isso que nunca conteve o sorriso da palavra "chuva", para ele uma palavra chuvante, úmida e sorridente.

Foi assim que Odilon concluiu pela necessidade de fundar uma oficina de palavras. Iria colocar uma tabuleta com a inscrição: "Consertam-se palavras". Ali, ele retiraria o máximo de consoantes dos nomes para que as palavras ficassem mais vocálicas, mais sonoras e musicais. Adorava dizer que era um privilegiado por ter nascido em maio. Para ele, "maio" era um suspiro, uma palavra sorridente, e tão feliz que aquele mês era abençoado por "Maria", pelas mães e pelas mulheres. Odilon era taurino mas não gostava de dizer seu signo.

Ele achava "taurino" muito forte para ser de maio. Era evidente sua aversão a certas palavras. Uma das mais odiadas era "umbigo". Tinha tanto horror a essa palavra que evitava olhar umbigos. Mesmo assim tentou mudar essa palavra. Tentou aniquilá-la para sempre, mas não houve jeito. Queria convencer as pessoas de que nem os poetas toleravam essa palavra. O umbigo era para ele algo tão belo que deveria ser chamado de "alvorada", "ventarola", "Oásis", "maravilha", "romã", "holofote" ou "estuário".

Nessa sua luta pelo belo, Odilon terminou fundando sua oficina, com placa e tudo. E ninguém aparecia para consertos, só para conversas. Vez por outra chegavam textos para revisão que depois escassearam devido a mania que ele tinha de trocar todas palavras que achava feias. Não admitia o mau gosto de algumas pessoas que usavam consoantes exageradamente. Ele não gostava das consoantes. Para ele, eram apenas ruídos que roubavam sons das vogais. Daí que ao decretarem a morte do trema ele pôs luto por três dias e mandou celebrar missa de sétimo dia.

Dizia ele que o extermínio do trema foi uma diminuição de um som vocálico. Só escapou da melancolia que o acometeu porque houve a oficialização do "y". Uma coisa pela outra; o que é fato, é que a oficina de Odilon só cresceu quando ele começou a estudar os nomes das pessoas. Afinal, quando aparecia sinal de gravidez, na região, ele já começava o seu apostolado junto à parturiente para que o nome do futuro rebento viesse apropriado. Nome estrangeiro desapareceu na sua terra.

Sua luta maior foi, no entanto, contra a artista maior do lugar. A menina começou a cantar e encantar. Era Maria do Socorro, sua prima. Cantava tão bem que foi contratada para gravar um CD. A gravadora, no entanto, exigiu uma mudança de nome, algo mais digerível para a mídia. Foi aí que o primo fundador criou uma relação de dez nomes para a prima levar à gravadora. Nenhum foi aceito. E o pior, a empresa deu seu próprio nome "Mary Help".

Quando Nicanor tomou conhecimento do novo nome da cantora prima, surtou de vez, tendo sido contido com camisa de força e um "sossega leão". Mary Help fez relativo sucesso mas perdeu a amizade do primo, e ficou com medo de retornar a Sipaúbas. Afinal, além do nome mudado, teve algumas músicas da coletânea que vieram com título mesclado com temas estrangeiros, como: "A garota do Shopping Center", "Meu corpo no Self Service", "Miss Help and Mister Pelp", "Sale, Sale, Sale" e outros. Foi quase que o fim para Odilon.

Desiludido com a traição sofrida no próprio seio familiar e solto do hospício como mais ou menos curado, Odilon voltou-se para um trabalho mais difícil quanto perigoso. Era mudar os nomes estrangeiros nas placas das repartições. Tentava a mudança, usando o diálogo. É tanto que ao cabo de um ano, pelo menos em três placas do comércio ele conseguiu mudança de nome. Mas era pouco. Partiu então para a clandestinidade. Saía à noite mudando nomes de algumas placas e quebrando outras. O hotel de Dona Borrega adormeceu "Chic" e acordou "Chico", o clube "Five Music" virou "Fava Musical" e a praça "Robert Kennedy" mudou para "Otaviano Pantoja", o fundador do lugar. Nesse trabalho mudancista, Odilon também mudou. Foi levado de sua oficina para uma nova moradia, a cela número três da delegacia da cidade. Não esqueceram de levar a placa "Consertam-se palavras", que lá está pendurada.


FONTE: Jornal Diário do Nordeste - 28/08/12.


 

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