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  • Foto do escritorBatista de Lima

Como ser tão sertão

Atualizado: 12 de fev. de 2019

Batista de Lima



Conheci melhor o sertão quando dele quis me livrar. Foi então que os calos das mãos reclamaram e as unhas quebradas dos pés ressuscitaram topadas. Aliás, foram as topadas minhas primeiras professoras e depois os coices dos animais de carga. O sol também deu lições de resistência, mesmo com os protestos da lua e das estrelas em noites de céu limpo. Não posso esquecer os espinhos das capoeiras e a quentura da fornalha do engenho, quando fui corta-mel. Ainda hoje doem. Entretanto é uma dor gostosa, por vir montada na garupa da saudade.

Sertão pega a gente de surpresa. Ele brota em plena metrópole. Aí a gente retorna no lombo do pensamento que já aparece de cambito e cangalha. Daí, é só montar e cair nas bribocas, nos cafundós e nas charnecas. Sertão é assim, tão despovoado, mas termina povoando a gente. Se falta água na cacimba, a gente arriba para a capital e os cachorros correm atrás do transporte até cansarem. Dá uma dor danada. E as casas vão andando para trás e a gente fica voltando, mesmo ainda indo.

Sertão tem cheiro de melosa, que é o perfume das vacas leiteiras, quando à tardinha voltam ao curral. Há outros cheiros também. O cheiro da chuva, onde quer que chova, enche os açudes da nossa memória. E aquele chiado dos pingos no telhado faz a gente melhor se agasalhar no lençol, esperando pelo segundo que a mãe não pode trazer mais. Sertão tem isso. Ele brota em qualquer lugar. Ele está onde a gente menos espera.

Sertão é quando a gente pensa tão devagar que cochila, e às vezes até adormece. É preciso então uma boa rede, e com varanda. Um alpendre não faz mal. E que a casa seja virada para o nascente, com muitas portas e janelas, para entrar o vento, o som dos riachos, o canto dos passarinhos e as notícias que de longe vierem. Um curral ao lado faz bem, e não se pode esquecer um santo na parede e um quadro de um casal antigo da família.

O sertão lateja na pele trêmula do terreiro equinociado e o silêncio rasteja pelos oitões das casas sobreviventes. Nada tem pressa, pois o vento precisa levar nas costas o peso das muitas faltas e as folhas secas como lâminas que ferem as tantas horas da culminância da tarde. É essa tarde o tumor do dia em desespero por salvação na noite. Ser é tão difícil diante dos convites dos grotões boquiabertos para deglutir a esperança. É nessa hora que um calango rompe o terreiro como uma lâmina ferindo um queijo ensanguentado.

Tão ser é a tarde que sua agonia tem nome de gente. Ou é de bicho o nome do cair do sol? Afinal, se aquela exuberância de luz despenca e é engolida pelas sombras, imagine-se este pobre coitado que tem medo até dos sonhos. Ah! Sertão! Ser tão ou tão ser, quando me atacas, é difícil me livrar de tuas patas, mas já conheço o poder do teu coice, que em vez de dor provocar, são de carícias teus arroubos nos meandros da memória.



FONTE: Jornal Diário do Nordeste - 05/02/2019.




 


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