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Como iniciar narrativas

Batista de Lima



Uma grande narrativa precisa começar com uma grande frase. O leitor precisa ser sequestrado pelo narrador no primeiro contato com o texto. Esse fisgar o receptor é uma forma de mantê-lo preso ao texto, ao longo do seu percurso, e ao mesmo tempo fazê-lo construtor desse percorrer. Daí ser importante conhecermos alguns desses marcantes inícios de narrativas, principalmente de alguns clássicos. Livro mais editado e mais lido na língua portuguesa, a Bíblia se inicia com um período simples mas de enorme abrangência significativa. ´No princípio Deus criou o céu e a terra´. A partir daí é que vem a explicação de como era essa terra e esse céu, para em seguida vir a sua ocupação por pessoas, animais, plantas e coisas. O Dom Quixote, de Miguel de Cervantes, é tido como marco inicial da modernidade narrativa. Ele marca aquele momento em que a epopéia versificada passa a se apresentar como romance em prosa. Depois há o fato do anti-herói ser catapultado ao mesmo patamar dos heróis bem nascidos, até então utilizados nas narrativas. É importante, pois, conhecermos a frase inicial de Cervantes. ´Num lugar da Mancha, de cujo nome não quero lembrar-me, não há muito tempo vivia um fidalgo, desses de lança no cabide, adarga antiga, rocim magro, e galgo corredor´. Ao longo da leitura desse famoso livro, detecta-se uma musicalidade denunciadora de um ritmo épico, como se o texto antes fora gestado em verso. Uma das obras mais polêmicas, da literatura do século XX, é Lolita, de Vladimir Nabokov. Num primeiro momento chegou a ser tachada de pornográfica e a ser recusada, a sua edição por várias editoras. Depois verificou-se ser uma obra que trata principalmente do amadurecimento, diante da velocidade do tempo corrosivo, isso tudo, é claro, sem esquecer a questão da paixão entre um adulto e uma adolescente. A primeira frase necessita da segunda para encadear a proposta da obra inteira. ´Lolita, luz da minha vida, labareda em minha carne. Minha alma, minha lama. Lo-li-ta: a ponta da língua descendo em três saltos pelo céu da boca para tropeçar de leve, no terceiro, contra os dentes.´ A corrosão em Cem anos de solidão, de Gabriel García Márquez, fica por conta da ação quase imperceptível de insetos. Esse fenômeno leva a uma metáfora do isolamento e da desesperança de uma América Latina representada pela Colômbia onde conservadores e liberais viviam em permanente conflito. Nesse cenário desaventurado é onde ´o Coronel Aureliano Buendía promoveu 32 revoluções armadas e perdeu todas.´ Condenado, é o momento de sua execução que abre o livro. ´Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o Coronel Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo.´ Logo em seguida vem a descrição do povoado. ´Macondo era então uma aldeia de vinte casas de barro e taquara , construídas à margem de um rio...´. Nessa mesma criação de tipos, pode ser enquadrado Ariano Suassuna, que no seu Romance d´A Pedra do Reino e o príncipe do sangue do vai-e-volta, cria uma atmosfera mágica, indo da epopéia à comicidade, do erotismo à fabulação. Obra repleta de dicotomias, há algo de barroco na sua elaboração. O seu personagem principal, nos mesmos moldes de Riobaldo, de Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, conta sua história após a conclusão de toda sua odisséia. D. Pedro Dinis Ferreira-Quaderna, Cronista-Fidalgo, Rapsodo-Acadêmico e Poeta-Escrivão, depois de preso, começa a narrar.´ ´Daqui de cima, no pavimento superior, pela janela gradeada da cadeia onde estou preso, vejo os arredores da nossa indomável vila sertaneja´. A vila é Taperoá, de uma Praraíba alucinada, lancinante e enigmática. Enigmática, aliás, é a literatura de uma maneira geral. Há, no entanto, obras que primam por uma sucessão de enigmas que o leitor precisa de perspicácia para seu desvendamento. Exemplo disso é O processo, de Franz Kafka (1883-1924). A primeira frase já desperta uma curiosidade no leitor, razão por que ´Alguém certamente havia caluniado Josef K. pois uma manhã ele foi detido sem ter feito mal algum´. O pior é que depois o leitor vai sendo colocado frente a frente com pequenos detalhes que em vez de esclarecer, aumentam os mistérios. Nesse dia da prisão, Josef K. completava 30 anos, esperava o café da manhã e foi surpreendido por dois inspetores, que sem nenhum motivo aparente, lhe deram ordem de prisão. Entretanto, nem sempre uma excelente narrativa se inicia necessariamente com uma frase arrebatadora. É o caso de Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa. No entanto, o final, com o oito deitado, é um verdadeiro achado. Mas em Sagarana, um conjunto de nove novelas, algumas possuem início antológico. ´O burrinho pedrês´: ´Era um burrinho pedrês, miúdo e resignado, vindo de Passa-Tempo, Conceição do Serro, ou não sei onde no sertão´. ´Duelo´: ´Turíbio Todo, nascido à beira do Borrachudo, era seleiro de profissão, tinha pelos compridos nas narinas, e chorava sem fazer caretas; palavra por palavra: papudo, vagabundo, vingativo e mau. Mas no começo desta estória, ele estava com a razão.´ O leitor fica querendo conhecer a estória e saber da razão. O leitor precisa, pois, ser conquistado, de qualquer forma, ou, do contrário o texto não será lido. Pode ser até um apelo fático para que a narrativa seja lida. Em ´O gato preto´, famoso conto de Edgar Allan Poe, o início é até um pouco honesto demais para incentivar o leitor, mas como é inusitado, vai-se à segunda frase. A primeira é: ´Não espero nem peço que se dê crédito à história sumamente extraordinária e, no entanto, bastante doméstica que vou narrar.´ A segunda pouco se diferencia da primeira: ´Louco seria eu se esperasse tal coisa, tratando-se de um caso que os meus próprios sentidos se negam a aceitar´. Até aqui, nada de extraordinário foi contado, mas o narrador já despertou a curiosidade do leitor. Já o preparou para ingressar na terceira frase, colocando-o aos poucos no labirinto que vai criando. Às vezes, portanto, a primeira frase não é suficiente para a conquista definitiva do leitor e por vir instigando a leitura da segunda, que por sua vez desemboca na terceira, leva-nos à leitura de todo o primeiro parágrafo que traz por completa a conquista para o livro inteiro. Esse é o caso de Dona Guidinha do Poço, de Oliveira Paiva, um clássico da literatura cearense, representativo do realismo brasileiro. Eis pois o primeiro parágrafo: ´De primeiro, havia na ribeira do Curimataú, afluente do Jaguaribe, uma fazenda chamada Poço da Moita. Situada no século passado pelo português Reginaldo Venceslau de Oliveira, passou a filhos e netos. Se não fora o desgraçado acontecimento que serve de assunto principal desta narrativa, ainda hoje estaria de pé com ferro e sinal´. Finalmente pode-se dizer que a arte de narrar é uma conquista, e que como tal ela precisa de uma fala até antes de falar. E que depois de conquistar o leitor precisa mantê-lo fisgado até o fim do texto. Isso, no entanto, não é apenas privilégio da narração, qualquer texto precisa desse pique permanente para segurar o leitor. Ora, se até aqui, caríssimo, você se manteve lendo esse meu texto, alguma coisa eu fiz ou disse para mantê-lo vivo nesse transcurso que eu não poderia fazer sozinho. Portanto, agradeço a agradável companhia.

 

16/06/2009.

 

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