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  • Foto do escritorBatista de Lima

Com vistas para o leste

Batista de Lima


Nossa casa tinha vistas para o leste. Não era novidade, pois todas as casas de lá tinham vistas para o nascer do sol. E ninguém chamava leste. Era nascente. Diziam que o sol nascia onde todos os outros entes nasciam. Daí o nome nascente, lugar onde até o dia nascia. Era por isso que todos os dias as pessoas assistiam ao nascer do sol. Primeiro era o quebrar da barra. Era como um ovo se quebrando. Era um grande ovo escuro de onde nasceria em seguida um sol de brilho. O dia perderia a graça se o sol não nascesse em nossas retinas. Era preciso fotografar o sol e guardar na mente, a cada dia.

Às vezes, quando garoto, eu tentava colocar no papel, a descrição daquela imagem do parto da manhã. Não conto as vezes em que tentei descrever o nascer do sol. Quantas folhas de papel joguei fora após tentar inutilmente prender nas palavras aquele sol que ia embora por cima de minha cabeça. Parece que era tão rica aquela imagem que as palavras enfeiavam sua beleza. Era como sujar uma tela divinamente pintada por mãos que não se viam. Foi assim que o tempo me ensinou que o nascer do sol é para ser visto e nunca para ser descrito. É para ser sentido na pele, esquentando o corpo devagarinho na construção da manhã.

Às vezes chego a pensar que todas as pessoas deviam assistir, todos os dias, ao nascer do sol. Seria como uma oração ao sol. Seria uma celebração de uma epifania. Seria uma cena de beatitude sublime, todas as criaturas viradas para o nascente a assistir ao nascimento do dia como se fosse o nascimento da vida a se repetir ritualisticamente a cada amanhecer. Já me disseram que há pessoas que nunca viram um nascer do sol. Penso que essas pessoas nunca nasceram, porque ver o nascer do sol é ver nosso próprio nascimento ser mostrado mesmo depois de tantos anos que nascemos de nossas mães.

Até acho que aqueles povos indígenas que cultuavam o sol eram muito mais sabidos que nós de hoje que nunca pagamos tributo por essa lâmpada enorme que nos clareia sem nada cobrar. Sempre achei que uma boa aula para as crianças seria pelo menos uma vez por mês assistirem ao nascer do sol. Seria levá-las para um local elevado e assistir àquele ritual em que ele diariamente vai saindo por trás do horizonte, silenciosamente, para não acordar os adultos preguiçosos nem despertar as crianças embaladas por sonhos de paraísos. O sol tem um respeito muito grande por todos nós. Seu trabalho de iluminar é silencioso.

Os japoneses são mais tranquilos que todas as outras gentes porque cultivam o sol. Eles gostam tanto do sol que o prenderam na sua bandeira. Assim eles passam o tempo todo em contato com o sol. É por isso que o Japão é chamado de Império do Sol Nascente. Eles sabem a importância de nosso astro rei. Sabem que o sol não dorme, que está sempre cuidando de iluminar alguém. Está sempre levando calor a quem tem frio. E quando se esconde no fim da tarde é para trazer frio a quem tem calor. É para trazer sono a quem tem cansaço e trazer sonho a quem tem esperança.

Há certos dias em que o sol faz greve de brilho, mas não é culpa dele. É que as nuvens vêm tomar sol nas praias do céu e deixam as gentes na sombra. Assim, esses dias ficam mais tristes, tão tristes que a natureza chora em forma de chuva. Teve uma semana em 1942 em que o sol ficou encoberto por seis dias. Isso dificilmente acontece na nossa terra. Por isso a população ficou ansiosa com tantas nuvens pegando bronze e tapando o sol. Em nossa cidade houve até quem se irritasse por falta da claridade total. No sexto dia, no entanto, já para o final da manhã, o sol apareceu. O povo então prorrompeu em estrepitosa vaia. Ele envergonhado, de novo escondeu-se. Mais duas vezes apareceu e por mais duas vezes foi vaiado pela população.

Essa vaia ao sol o irritou tanto que ele expulsou as nuvens que lhe tapavam a vista e 1942 tornou-se um ano de seca. Só assim aprendemos a não mais vaiar nosso sol. Entretanto teimamos em fazer queimadas e soltar fumaças por chaminés de fábricas e escapes de carros. Teimamos em tapar o sol com o fumacê da nossa ignorância. Daí que as nuvens não aguentam tanta fuligem nos seus pulmões e vão buscar outras praias. Isso faz com que não tenhamos mais chuvas, não tenhamos mais água. Portanto precisamos trazer de volta as nuvens que em certos dias precisam tomar banho de sol para suarem nas nossas biqueiras. Precisamos parar de esfumaçar o céu do sol.

O leste tinha vistas para nossa casa. Acordávamos para ver o olho grande do sol. O sol vinha avisar que o dia vinha nascendo. Os animais espreguiçavam-se nos terreiros, as aves entoavam suas canções de ninar manhãs. A lenha seca estalava no fogão e o cheiro do café invadia a casa. A manhã se banhava nas águas do açude cheio e se enxugava com as vestes mornas do sol nascente. O vento brisava as árvores, pedindo passagem para a claridade. O dia estava nascido na manjedoura da serra. As notícias ficavam do outro lado do horizonte. Notícias eram coisas além do leste. Então eu me convencia de que realmente não havia palavras nem cadernos para tanta vida. Eu me convencia de que tudo isso se escrevia na minha pele e reverberava nos meus abismos.


FONTE: Jornal Diário do Nordeste - 29/09/15.


 

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