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Coisas milagradas

Batista de Lima


São as palavras que milagram as coisas. São as palavras que iluminam as coisas de dentro para fora. São transfigurações em que os poetas se empenham. Eles reviram as coisas, usando, como ferramenta, a palavra. Foi exatamente um desses artífices do verbo que campôs "Metal sem húmus". O nome dele é Dércio Braúna, a editora é a 7 Letras. Procurando na biografia do poeta algo que chamasse a atenção, lá estava que nasceu em Limoeiro do Norte, Ceará, em 1979. Nada mais simples se não fosse Limoeiro a cidade brasileira com mais poeta "per capita". Quem não é poeta em Limoeiro, de Limoeiro não é.

Aí está o limoeirense Dércio Braúna tratando com delicadeza a rudeza das coisas. Humanizar o lado desumano das coisas é sua função. Sua palavra vem grávida de ternura para apascentar a loucura dos elementos. Ele suaviza a ferocidade do homem, no confronto com seus abismos, em 95 páginas coléricas de signos perturbadores. Sua poesia é cortante, pois é possuidora de um gume que quanto mais corta, mais se afia. Por isso que, nessa lira de gumes, ele confessa: "faço versos como quem sangra vidas, / retalho carne como quem recita Pessoa, / amolo minha lâmina / como quem ensaia dizimentos". Seu fazer poético é uma irritada oficina onde as ideias se torturam e o silêncio adoece para salvar a palavra.

Por isso que há uma hora para olhar as nuvens e outra para sonhos capinar. É preciso ingressar nesses sonhos com destreza sem fúria, conseguir a inabalável verdade dos dias, através da colheita dos grãos tenros da espiga das horas. Afinal, esmurrar o nada na busca de respostas é uma forma de procurar perguntas. Daí que a leitura desses poemas de Dércio é um confronto com um balseiro de perguntas. Mas uma coisa é certa, ele demonstra que gosta do gosto do poema, como se as palavras salivassem signos, metáforas esfomeadas a sugarem o tutano da memória. De sua poesia escorre a seiva de um passado que não existiu, mas porque imaginado passou a ter existido.

Para a instauração desses inventos, Braúna escava no húmus da linguagem, vazios em que o leitor sucumbe numa leitura que trepida. São feixes de ocos lapidados como fogos que ditam aos pés as leis dos passos ensaiados. Por isso que para o poeta, o cão é cego e vive mastigando o faro, e a mulher vive varrendo a solidão pela porta da cozinha, enquanto o homem constrói casas com lições de moluscos em suas ostras. Dessa alvenaria surgem poemas tristes, vertebrados corações, prestes a explodirem o código. Dércio Braúna é perverso com as coisas, pratica atrocidades para delas extrair o que se esconde dos incautos. Cada coisa é um ser que ele secciona em vida para observar os últimos latejos do coração dando adeus.

Diferente dos outros poetas de Limoeiro, Dércio não é telúrico. O rio Jaguaribe, que banha a cidade, não aparece, as carnaubeiras, completando a paisagem, não falam. Entretanto, esse poeta universaliza sua arte de forma tal, que poderia ser localizado em qualquer parte do mundo, ou em parte alguma. Afinal, sua poesia transborda do olhar que mergulha nas entranhas da linguagem e de lá emerge impregnada de sentidos antes adormecidos. Há portanto uma memória encravada no código, que elaborado pelo homem, foi com o tempo acumulando sentidos e sofrendo o esquecimento dos usuários. Braúna trabalha revirando a diacronia que a língua possibilita fornecer. É aí onde ele remexe.

O importante é que suas entranhas estão na fala, por isso que o tempo, como algo de assombroso, risca no corpo uma língua desconexa. É a linguagem que tenta abrandar sua corrosão. Por isso que sua casa é de uma triste arquitetura. É uma casa que na sua velhice é um arcabouço de ossos, com seu olhar reprovativo a perguntar pelos talheres. Assim como a casa perscruta o som dos talheres, o poeta espera por aquele que um dia foi. Esse não-saber se a espera tem resposta vive cheio de sabenças. Quanto ao mundo, esse é quiçá, talvez oxalá. Aliás é um sacrário de dúvidas, Jardim de perguntas.

O poeta Dércio exorbita nas imagens. Por exemplo, tão escura é a noite que ele a retalha como a um queijo negro. Ele não fala nisso, mas o leitor deduz que ele está dizendo. Seu corpo é uma "caixa óssea irrigada de sangue". Sua cerne é trêmula como a de alguém que tomou um "copo de cólera". Sua vingança é quebrar "o ossário da sintaxe" herdada e sair por aí espatifando signos envelhecidos. Por isso que para ocupar a manhã, como poeta, ele precisa fingir uma fragilidade, mesmo a contragosto da linguagem encrespada. Tudo é conseguido quando o silêncio por dentro de tudo é mexido nas suas raízes.

Para conseguir essas façanhas poéticas, o poeta usa de manhas e artimanhas linguísticas a revirar a linguagem. Esse exercício metalinguístico prende o leitor até à última letra do livro. É uma poesia onde não se identificam intertextualidades, ancestralidades, raízes territoriais nem dramas pessoais. A poesia de Dércio Braúna é única, produto de uma escavação no monturo da linguagem. Pedaços de palavras, de frases e até de textos são extraídos da língua sem preocupação com época determinada. O importante é o nó que ele consegue dar.

A que se atribui a universalidade conseguida por Dércio? Acredito que principalmente através de suas leituras. Depreende-se de seu texto que seu cabedal de leitura é imenso. Apesar da idade ainda jovem e de não constar a frequência em estudos formais de Teoria da Literatura, esse poeta esbanja conhecimento da linguagem poética. Começa sua vida literária por onde os outros terminam. Esse seu livro de poemas é até didático, para quem quer aprender poética.


FONTE: Jornal Diário do Nordeste - 26/06/12.


 

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