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Clarindo Preto

Batista de Lima


Era um homem de poucas auroras e muitos anoiteceres. Penumbroso, preferia remexer os escombros do dia nos confins da escuridão. No abismo da madrugada, já rondava socavões em que o sol não chegasse pela mão da claridade. Era um expurgado em benefício da travosa treva. Não conhecia o azul do céu nem a cor do lírio. Era a encarnação do silêncio, devassando esconderijos. Era um bicho soturno apesar do nome: Clarindo Preto. Detestado nome, como seria feliz se fosse anônimo, ninguém.

De tanto sofrer por ser, um dia resolver não mais ser, mas teve medo do desfecho. Ainda andou comprando chumbinho, depois uma arma, e chegou até a visitar um despenhadeiro, mas teve medo da dor. Por isso resolveu judiar com quem feliz se mostrava. Foi então que arranjou um grande couro de bovino preto e vestiu-se da cabeça às patas. Depois mudou-se de caneca e pote, indo morar, sem ninguém saber, na Grota Funda da Oiticica Torta. Ali, umbroso, esperava a noite, e, vestido de sua escuridão, assombrava aos urros, a quem por lá passar ousava.

Correu fama pelas bribocas, da coisa feia que assombrava gentes. Teve mulher que perdeu criança, vaca que amanheceu sangrada e morta e até um ataque noturno ao vigário Padre Inácio, que vivia se metendo na vida da coisa estranha. Era o cão, avisando ao povo, do fim do mundo e do juízo final, marcando até o dia. Podia, entretanto, ser alma do outro mundo ou homem virado em lobo, lobisomem e assombração. As conversas mais desajeitadas engatinhavam pelas sete ruas descalças que o cidade envergava. Foi por isso que aumentaram missas, novenas e renovações.

Depois de tantas promessas feitas, depois de missas tantas rezadas, procissões e benzeduras, o povo da terra descreu-se diante da força do demo. Foi aí que apareceu, entre aquele povo assombrado, a ideia de convocar com urgência, os trabalhos de porrete e faca, do malfeitor preso único da cadeia da cidade. Terêncio Espinheira era o homem. Com seus dois metros de cicatrizes, o matador convocado aceitou a empreitada em troca da liberdade. Vestiu-se, pois, de sua coragem de léguas e mudou-se de mala e cuia sorrateiro e sanguinário para os pastos da coisa lúgubre.

Alertado com antecedência, declinou do seu trinta e oito, pois coisas das profundas vindas têm corpo fechado a tiro. Por isso optou por levar consigo seu punhal de meio metro, um facão de sete riscas e a coragem que ganhou, desde que homem se fez. Por isso, na sexta-feira chegada, dia em que a assombração assombrava, estava Terêncio Espinheira, à meia noite em tocaia, nos reinos que a coisa feia reinava. Debaixo da Oiticica Torta, na hora fatal ele ouviu o esturro da besta fera, na sua direção se indo.

Terêncio desenhou na testa um Pelo Sinal mal feito e atracou-se em luta renhida de morte, com a fera escura urrante. As moitas se afastaram em respeito e as lâminas de Espinheira brilharam na réstia de luz vinda da lua. O bicho quando se viu acuado com facão e punhal, riscando as suas carnes, tentou fugir do valente, mas era tarde demais. O punhal de ponta fina e amolado dos dois lados já tinha rompido o couro de vaca e atingido de morte o tinhoso Clarindo da escuridão. Sete estocadas do ferro em sete locais mortais, botaram a assombração no chão, já molhado de sangue, e daquele momento em diante, Clarindo ganhou para sempre a escuridão desejada.


FONTE: Diário do Nordeste - 29/11/2018.


 

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