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Cinco mulheres vezes cinco

Batista de Lima




São cinco escritoras vezes cinco segredos. São cinco verdades vezes cinco rastros de mentiras, todas mostrando quanto é vasto o coração de uma mulher. Reunidas para degustar histórias e afetos, elas se põem nas páginas como se pusessem à mesa, e se fartam e nos fartam. São elas: Cleudene Aragão, Inês Cardoso, Maria Thereza Leite, Ruth de Paula e Vânia Vasconcelos, que se agregam em um projeto que acaba de produzir seu segundo produto, a antologia "Rastros de mentiras e segredos". É uma coletânea de contos tão bem urdidos, que se forem mentirosos, terminam por se tornarem verdades segredadas.

Cleudene Aragão, especialista em histórias de desencontros, traz uma "Trilha sonora de um longo adeus", que é, como diz um seu amigo, um conto de quem engoliu uma radiola. Depois, em "Um grito nas sombras", faz um périplo pela cidade do Rio de Janeiro, narrando-a. Confeitaria Colombo, Rua do Ouvidor, Real Gabinete Português de Leitura e Palácio do Catete, todos falando pelo corpo da cidade. Até o Hotel Regina, que ela omite, termina por falar. Sua ousadia maior está em "Desejo Delivery", conto sensual, sua marca principal. Termina, no entanto, com "À toa", em que se recompõe, aparentemente como romântica e sonhadora. O leitor, entretanto, prefere suas ousadias voluptuosas.

Inês Cardoso, com suas frases afiadas se torna mais cortante quando o massapê massacre da terra Cariri transborda em cheiros e sensualidades. Doce como as fornalhas dos engenhos ela vai da rapaduridade sugerida às adegas com "Pinot noir". São narrativas sensuais, corajosas e nutridas de uma ancestralidade narradora. Sua arte de contar histórias tem raízes no alpendre da casa do sítio, ouvindo o chocalho do gado e o cheiro nas vacas de pastagens atravessadas. Suas narrativas glicosadas trazem o cheiro da melosa dos roçados misturado com a fumaça do engenho e um gosto de batida na boca. Isso sem falar no pequi que ela guardou para a próxima viagem.

Maria Thereza Leite, a mais premiada das autoras e mais detalhista, não apenas descreve as coisas, ela dá-lhes a volta. É a contista da terceira dimensão.

Mostra o lado mais obscuro dos signos, desencanta os encantamentos. É a narradora das horas abertas. Seus contos são os mais longos por ter que dizer tudo do que aborda. Não fica no nível do significante, ela vai à estrutura profunda do ser. Seu conto "Olho de vidro" é denso, metafórico e enigmático. É uma escritora que não se preocupa apenas em narrar. Ela descreve cada reentrância do mundo visualizado como a extrair uma fala nova de cada coisa.

Ruth de Paula não é apenas mulher, é uma lagoa pronta para profundos mergulhos. É a mais poética das cinco damas mentirosas. Desconstrói a linguagem na busca de verdades secretas. Com ela, um homem perde um ônibus por conta de uma lágrima que perde uma mulher. No seu conto "Morfeu", ela "remenda as horas que se esgarçam silenciosas por entre as cortinas do tempo". Aos quarenta anos recupera a infância que a primavera lhe havia roubado por inveja da seda dos seus desejos. Ruth extrai romantismo das impossibilidades. Se colocarem-na sobre uma pedra, ela extrai gerânios. São doces suas quase memórias como os mais saborosos cajus que um dia se afastaram de suas castanhas feito clausuras.

Vânia Vasconcelos não tem pressa. Ela foca seu olhar para a vida de dentro, pois é lá onde pode pulsar o impossível. Sua arte de segurar o tempo começa ao tecer de forma delicada o cotidiano.

Seu mergulho é profundo porque primeiro ela oxigena o fôlego. Não quer que sua narrativa termine. Daí que o leitor é partícipe de seus contos que parecem jamais ter fim. O tempo é mastigado vagarosamente para melhor ser deglutido. Há um acolhimento na sua narrativa. Seu quinteto do silêncio termina por estabelecer um viés ecológico de que necessitamos. Sua quilometragem é mínima para chegar mais longe. Não se arrisca para preservar uma garantia. Cativante sua lentidão.

Essas duzentas páginas de narrativas sequestram o leitor e o prendem numa saudade final. É como se a convivência com essas cinco mulheres, nesse percurso, criasse laços de afeto. Afinal ouvir histórias é algo confortável. É um cafuné no nosso existir. Acalanto, ternura e afeto compõem um narrador. Numa convivência anterior com elas na coletânea "Quantas de nós", de 2010, era latente esse aconchego com o leitor. Agora tudo se repete como afirma Ângela Gutiérrez no prefácio: "são: sentimentos e sensações, amores e desamores, atrações e repulsas, sonhos e pesadelos, humor e humores, o passado e o presente, talvez o futuro, a presença e a ausência do outro, o desconhecido homem".

Ao final da leitura dessa seleta, constata-se que nossa literatura continua com sua vocação gregária. É evidente que essas cinco autoras poderiam, como já o fizeram, publicar individualmente. Acontece que o fato de se agruparem, cria laços, facilita a edição e, o que é mais importante, promove mais seus textos. São cinco divulgadoras do livro, diante de um contexto literário carente de distribuidora. Temos no Ceará muitas editoras, mas falta a distribuição. Essa é feita pelo próprio autor. E lamenta-se que uma obra como essa, de excelente valor literário, fique apenas reclusa na província em que habitamos.


FONTE: Diário do Nordeste - 06/06/2017.


 

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