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  • Foto do escritorBatista de Lima

"Cidade desatinada"

Batista de Lima




Templo do repouso e do lazer, depois do trabalho, aquela cidade, que me acolhia, entrou em desatino. Praça de guerra, preciso reforçar minhas trincheiras, porque o inimigo está de tocaia na minha calçada, armado de armas que nunca tive e que sou proibido de ter. Tenho que enfrentar o perigo, cedendo o que tenho e até o que não tenho, pois essa é a ordem do grande pai. Reagir não é permitido, e o inimigo sabe disso. Tanto sabe, que vem de peito aberto levar o que é nosso porque não podemos fazer nada, não podemos dizer nada. Por não podermos reagir, o que era nosso não é mais nosso. Até nossa vida está entregue ao humor do inimigo que ronda nosso quarteirão.

Minha cidade em desatino, não posso mais te ver como nos víamos. Estou aqui preso em prisão domiciliar para a qual não fui condenado formalmente. Não cometi crime algum, mas estou preso, resguardado por cerca elétrica, câmeras, cachorro de guarda, grades de ferro, cadeados, portões com trancas e portas de fechaduras potentes. Os verdadeiros criminosos estão na rua, livres, leves e soltos, rondando nosso descuido, farejando nossas rotinas, armando o bote para levar nosso carro, nosso celular, a bolsa, o dinheiro e a paz.

Minha querida cidade, onde estão aquelas praças que eram nossas? Quando mostravas tua juventude, havia bancos em que me sentava para pentear de sonhos a brisa que vinha do mar e as nuvens que paravam no céu para te cantar ninares. Hoje, os vendilhões do templo dos meus amores te ocuparam palmo a palmo os espaços por onde respiravas, por onde o pulmão urbano aspirava o ar do leste. Aqueles pássaros que entoavam loas foram tangidos para o sem destino. É difícil não se angustiar diante de um paraíso perdido, onde éramos tão felizes e não sabíamos.

Minha querida loura, que um dia o sol desposou, onde anda teu astro, teu amante diário, que rasgava teu céu em triunfo? Entre quatro paredes e de portas atravancadas só vejo nesgas de claridade, vestígios de um sol quadrado. Teu corpo está submisso a outro reinado e tens te tornado um submisso animal doméstico. Mesmo assim não dormes mais, porque te roubaram o precioso sono, ao som dos decibéis descontrolados dos paredões eletrônicos que disputam com os aviões quem ronca mais alto. Por isso, minha canção de hoje tem o tom das elegias, quando cantar te quero. Pássaros estranhos fizeram ninho no teu peito e puseram ovos de aço no meu canto.

Minha antiga cidade dos ventos, agora me estiras uma folha branca, para me dizer que ainda restam as palavras, para tentar arrancar de ti o que sobrou na memória. Mas, querida, não tenho mais o antigo prazer elementar da chuva, quando das bicas dos telhados cachoeiravam folguedos líquidos. Os teus rios piscosos viraram vômitos bebidos pelo mar, tornando a maré proibida. As manhãs antigas são remorsos que viram gotas de sangue nesta folha branca que por socorro grita. São poucas as imagens recordativas que se querem virar palavras. Elas se escondem como peixes ariscos de águas turvas.

Jacarecanga, Jacareganga, do alto das escadarias do Liceu, meus olhos mergulhavam no mar sem fim do fim da rua. E os casarões ali postados testemunhavam as lições do dia. Como era gostoso o meu sonhar. Como floriam teus jardins, hoje de flores profanadas. Como flertava tua praça, hoje de calçadas violadas e árvores desesperadas. Jacarecanga, Montese, Monte Castelo e Tirol, aquela guerra que ensanguentou o além mar vive teimando em se instalar por aqui. E a gente se enclausura nessa rotina assombrosa que quatro paredes provocam. Salvai-nos, Nossa Senhora dos desprotegidos, das ruas desertas, dos becos sem saídas e das calçadas feito escadarias.

Aldeota, aldeia, a audácia dos teus prédios, furando os céus, enterraram os ventos e o movimento das palavras que circulavam de casa em casa. Ai de ti, minha rua, que perdeu terra nos pés, encantada com a sedução das nuvens. Ai de ti, minha rua, que perde o senso na segunda-feira e só vai procurar no domingo. O exército dos carros, atropelando as horas, tangeu o último pedestre para a casa do sem retorno. Minha querida cidade de sonhos despedaçados, o que fizeram com aquele lazer dos domingos à tarde nos campos de futebol? Aquelas disputas nas quatro linhas saíram do recinto gramado e passaram às arquibancadas em forma de guerra de gangues.

Aquela cidade que tinha passeio para o público, abrigo para o Centro, praça para a bandeira, parque para as crianças e para a liberdade, ronca e geme com saudade dos convescotes, e dos aconchegos das crianças em peraltices. O que será de uma cidade de crianças de chocadeira, de homens prisioneiros e sonhos desnorteados? Por isso quando escalo esse corpo de curvas e retas da minha cidade querida, feito um poema de concreto, são versos de pé quebrado que sua poesia me oferta. Mucuripe e Sapiranga, Pirocaia e Cacorote, Morro do Ouro e Moura Brasil, meu coração ficou marcado pelas ondas da Beira Mar, pelo Sal da Barra, pelas sereias de Iracema pelo sol nas dunas, pelo vento pelos sonhos e por tudo o mais que o mar carregou.


FONTE: Jornal Diário do Nordeste - 16/08/2016.


 

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