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Chão ambíguo

Batista de Lima


A poesia é uma dama que aprecia um chão ambíguo. Nada é definitivo quando se ingressa no mundo rarefeito da metáfora. E a poesia é essa senhora vestida metaforicamente, camaleoa aos olhos dos que a cortejam. Por isso que ler poemas é árduo trabalho de um nadador que precisa mais do mergulho que do nado. Para se alcançarem as profundidades da poesia é preciso um fôlego especial, afinal, subjetividades não boiam em superfícies.

Foi sob esse prisma que tentei vestir essa "Camisa qual", de Cândido Rolim. Esse seu livro, como prega o título, é para ser vestido, como se fosse pele. O problema é que essa pele não vem sozinha, pois arrasta consigo uma infinidade de abismos. Até a terra que o viu nascer, a sertaneja Várzea Alegre, mostra sua ternura de mãe, mesmo o autor querendo a todo preço cosmopolitar-se. Afinal, Cândido Rolim já mourejou nas alterosas, bebendo da água que Drummond também bebeu, saboreou por tempos as paisagens cariocas e militou em bancos escolares gaúchos onde pôs no dedo anel de advogado.

Barranqueiro, esse poeta hoje habita Fortaleza e é habitado por ela, com quem divide constipações de uma cidade entrevada, reumática e safenada. Fortaleza é sua demência, uma de suas camisas puídas que lhe afeta a escrita. É tanto que no princípio de sua trajetória literária, quando ainda era possível respirar e andar, ele escreveu "Rios de mim". Era uma poesia fluente, cheia de eloquência adolescente, onde o sonho se camuflava nos primeiros arroubos metafóricos. Mas o mundo com suas crueldades deu-lhe lições de dureza.

Por isso que o seu livro seguinte foi "Pedra habitada", com seus rios se petrificando como escudos contra as intempéries das topadas que o mundo lhe preparava. Cândido Rolim tem candura até no nome, imagine na poesia. Harmoniza a relação entre os elementos que o cercam, dando-lhes uma nova ordem a partir da roupagem verbal e simbólica com que lhes aconchega. Daí que nesse seu "Camisa qual", ele transfigura peles, transforma significantes viciados, aos nossos olhos, em significados inusitados fora de padrões cristalizados.

Esse seu opúsculo de apenas trinta páginas é como se possuísse trezentas, dadas as vezes que se tem de ler cada poema para desfibrá-los como se estivéssemos desvendando o íntimo de uma cebola. Cada leitura que se faz do texto é como se retirássemos uma capa que logo é seguida por outra. A Editora Éblis se encarrega da primeira capa, um invólucro bem trabalhado como portal para ingresso num pequeno grande mundo que lhe vem após. Em cada poema, um tropeço em algo corriqueiro que provoca a descoberta de algo que olhos comuns não conseguem desvendar.

Logo no primeiro ele já anuncia suas intenções: "às vezes sigo / as inclinações do ego / mas sempre fico / com uma árida / escolha". Essa escolha árida leva-o a um "chão ambíguo" que é o terreno preferido para um golfar poético. Daí que, "conforme o caso / jamais dispensa o pormenor". Por isso que Cândido Rolim tem se tornado exímio rastreador de pormenores, pois vive a procurar contornos que cada coisa tende a guardar. Se antes foi um rio, depois uma pedra, agora vai da camisa ao "piercing", sem esquecer de vasculhar o "fichário" que é onde as coisas depositam seus primeiros uivos.

Antes, no entanto, de encetar esta odisséia, o poeta demonstra certo "esforço / de não dar sequer / o primeiro passo". Por isso que ao trafegar no ônibus "Agronomia X Estação São Pedro", ele se esforça para não mergulhar no "olho da bela moça / no vidro / urbano". Entretanto, o aceno do signo é tão forte que "em cada parada / o suor salga-lhe / o corpo / anônimo". Então ele tenta se conformar com a revelação de que "nem tudo parece ser / merecedor de afinco". Ao final, conclui que "há tanto para ver no visto / que desconfio já / ser passado esse indício / de rareza". As coisas, pois, lhe são intermináveis.

O mais interminável de tudo, no entanto, é a poesia. É nela portanto que o poeta tenta eternizar-se. A poesia é o espaço onde ele se debate. Viver é debater-se, instigar signos para catapultar-se às alturas. Por isso que, na hora do aplauso, Cândido Rolim "eleva a cabeça / um pouco acima da / aclamação". Afinal, originário lá do sítio Medeiros, ainda guardando tradições rurais, ele prefere tirar proveitos da moderação. Só exorbita na convivência com as palavras. No idílio que com elas mantém, devassidão e santidade se aglomeram. As palavras suscitam um universo onde tudo é permitido e disso o poeta tira seus versos.

Finalmente chega-se ao término da leitura com o poema "Camisa qual", que dá título ao livro. Um simples lance futebolístico suscita a elaboração poética. O mito se ergue construído pela mídia e apresenta-se tão efêmero que se não for a palavra salvadora do poeta ele se dissolve no tempo. O mesmo fenômeno ocorre com a moça exibindo o "piercing" no restaurante. Uma imagem mitológica que dura segundos torna-se duradoura pelo olhar milagroso do poeta. É essa arte de transformar relances em permanências que faz de Cândido Rolim um cultivador de signos. É preciso, no entanto, que o leitor ingresse com ele nesse seu emaranhado simbólico e vista essa camisa tal e qual o poeta, na lavratura de um chão ambíguo.


jbatista@unifor.br

24/05/11.

 

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