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Chuva de Poesias


Batista de Lima


A Praça do Ferreira, que foi palco da famosa vaia ao sol, em 1942, quarenta anos depois foi surpreendida com uma chuva de poesias. Tudo aconteceu às 10 horas da manhã do dia 31 de dezembro de 1982. Cem poetas foram lançados de avião por sobre a Praça em um momento em que a população enchia suas calçadas e seus canteiros, nas compras para os festejos da passagem do ano. É bem verdade que foram os poemas que pularam do avião e sem paraquedas dançaram ao vento e se espalharam pelo Centro de Fortaleza. No chão, e seguros, os poetas viram-se bailando no ar através de suas últimas produções poéticas. A população acorria para recolher os panfletos com nossas produções.

Aquele ano de 1982 foi bastante fértil em termos de produção poética. Em nosso Estado, lançaram-se 50 livros de poesia. Havia remanescentes do Grupo Siriará no auge de suas produções literárias, além dos componentes do Grupo Clã, que com quatro décadas de funcionamento era ainda responsável por boa parte dessas publicações. Isso sem contar com poetas independentes que também se editavam. Além dessas edições de livros, realizavam-se recitais poéticos em locais e oportunidades variados. O grupo de teatro amador, dirigido por Ivonilo Praciano, e que se chamava Literarte, era o mais atuante. Toda essa efervescência contava também com o apoio da Imprensa Oficial do Estado que á época funcionava em prédio bem equipado de maquinário gráfico, e que estava instalada em frente à Universidade de Fortaleza (Unifor).

Ali na Ioce, como chamávamos, os livros eram trabalhados graficamente por mãos artísticas de Tarcísio Garcia, Rosemberg Cariry e Floriano Martins. O autor acompanhava a feitura do livro ao som das máquinas de impressão. Assim, não foi difícil imprimirem-se dezenas de milhares de panfletos poéticos para serem jogados das alturas. Cada um media vinte centímetros de comprimento por catorze de largura impressos em papel jornal. Acima do título do poema e do nome de seu autor, havia um número em um pequeno círculo para indicar o lugar do poeta entre os cem que foram lançados do avião.

Na parte de baixo do prospecto, ao fim do poema, duas faixas com dizeres outros. Na primeira, mais estreita, a expressão "Poetas pelas Diretas". Eram os poetas marcando presença na luta por eleições diretas, uma reivindicação que pontificava por toda a nação. Na faixa inferior estava cravado: "Patrocínio: Assembleia Legislativa do Estado do Ceará. Apoio: Sonora, Acrilex, Livraria Gabriel, Fundação Cearense de Pesquisa e Cultura, Secretaria de Cultura do Município, Pró-Reitoria de Extensão. Promoção: Revista Comboio, Grupo Pagão, Grapo, Literarte, DCE (UFC)". Todos os panfletos poéticos traziam esses créditos, o que demonstram um viés político da promoção.

Compostos os folhetos, houve sua reprodução. Uns falam em 50 mil, outros afirmam que foram 20 mil e uns mais exagerados falam de 100 mil reclames poéticos lançados das alturas. O certo é que às 10 horas, exatamente, o avião começou a voar pelo Centro de Fortaleza, procurando posição melhor para o derramamento poético. Lá estavam, além do piloto, uns três poetas, entre os quais, o Carlos Emílio Correia Lima. Nós outros no interior da Praça do Ferreira, instruíamos a população para a recuperação do material jogado. Numa banca lá postada colocamos nossos livros para presentear quem recuperasse a coleção completa dos poemas.

Era muito difícil alguém, na hora, conseguir recuperar toda a coleção. Foi aí que começamos a presentear quem trouxesse cem panfletos, mesmo que não estivessem todos por ordem numérica. É por isso que hoje é uma raridade alguém possuir aquela coleção. O material que possuo, fornecido por Gabriel José da Costa, o livreiro, está incompleto, mas segundo ele, a Desembargadora Gizela Nunes possui a coleção completa. É um material suficiente para compor uma antologia histórica daquele momento. Basta acrescentar dados biográficos dos autores e o material jornalístico que à época divulgaram o evento.

A coleção que possuo está desfalcada de 20 poemas. Mesmo assim, os 80 que estão comigo são suficientes para mostrar a diversidade estética entre eles. Há bons poemas, mas há textos que se o vento tivesse levado para longe, não faria falta à coleção. Há poetas de renome e poetas iniciantes, além dos bissextos, como é o caso do excelente pesquisador Lira Neto que aparece com o poema "Grito II": "O gosto de chocolate/ mas bocas apaixonadas/ Precisa saber/ do gosto de sangue/ nas bocas que arrotam fome".

Alcides Pinto aparece com o poema piada "Equívoco", seguido de Roberto Pontes, com quem polemizou nos jornais sobre poesia. Roberto aparece com um bom poema de cunho social, com o título de "Exortação". Estão na coleção Natalício Barroso, Marisa Biasoli, Geraldo Markan, Antônio Sarubi e Rosemberg Cariry com seu "Anti-salmo". Luciano Maia, na época, não tão conhecido como hoje, mostra seu "Romance do vazio". Márcio Catunda, fugindo da sua poética mística, revela sua "Profissão de fé", de conotação social. Até Fabiani Cunha aparece como poeta com "Os príncipes mirins", e se sai bem.

A "Chuva de Poesia" foi um evento de bastante sucesso pelo seu aspecto inusitado. A mídia local e a nacional registraram o acontecimento. Até a poderosa Rede Globo anunciou de lá, em matéria muito bem elaborada, "Choveu poesia no Ceará". Pode-se concluir que essa promoção poética foi um coroamento de um ano fértil para a Literatura Cearense. 1982 choveu literatura o ano inteiro no Ceará. Tivemos livros importantes que surgiram naquele ano: "Cultura insubmissa", de Rosemberg Cariry e Oswald Barroso: "Quadrante Solar", de Francisco Carvalho; "Aspectos da Literatura Cearense", de Sânzio de Azevedo; "Jaguaribe - Memória das Águas", de Luciano Maia; "Três momentos da Ficção Menor", de F.S. Nascimento; "A Capitoa", de Milton Dias; "Utiludismo", de Pedro Lira; "O caldeirão", de Cláudio Aguiar. Esses são apenas alguns das dezenas de livros lançados naquele ano no Ceará. Para nós cearenses 1982 foi um ano que não mais se repetiu para a Literatura.


FONTE: Jornal Diário do Nordeste - 16/07/13.


 

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