top of page
  • Foto do escritorBatista de Lima

Chinelos de papelão


Batista de Lima


Ainda trago nítido na minha mente o episódio da primeira comunhão. Foi numa casa do sítio. Havia uns vinte meninos e meninas, todos vestidos de branco com uma vela na mão, assistindo à missa. Todos estavam de sapatos ou no mínimo alpercatas. Eu, com minha vela e minha roupa branca, diferenciava-me dos outros. Eu estava calçado com chinelos de papelão. Eu já possuía um par de sapatos, um par de alpercatas e até um par de chinelos de couro, mas estava calçado de chinelos de papelão com alças azuis de fita como se correias fossem.

Nunca entendi porque tive de me calçar de forma tão estranha, a ponto de passar toda a cerimônia religiosa, puxando a calça comprida, tentando cobrir os pés tão esquisitamente calçados. Não teve jeito, meus companheiros de primeira comunhão não tiravam os olhos de meus pés e alguns ainda faziam boca de riso. O que me constrangia mais era o olhar perscrutador das meninas, pois nesse tempo eu já as olhava com olhos de desejo. Foi uma experiência dorida que não terminou ao fim da missa quando mudei, em fim, de calçados.

Por toda a vida ainda carrego aquelas sandálias nos pés da memória. E o pior é que muitas vezes perguntei a minha mãe, que não está mais entre nós, qual a origem de ideia tão absurda. Ela sempre me dizia que havia sido promessa. Mas não dizia que tipo de promessa, e se a graça pedida fora alcançada. Aquelas sandálias sempre me levam a reflexões. A primeira diz respeito ao fato de não ter guardado a prova daquilo tudo. Gostaria, hoje, de ter comigo aquele par de chinelos para que ele próprio me desse explicações que minha mãe sonegou.

Talvez o contato permanente com aqueles calçados fosse uma forma de, saturando sua presença, tirá-los da mente. Fato é que talvez a ausência do concreto que vivenciei não consiga matar o abstrato que incorporei. É uma espécie de símbolo acidental que carrego no espinhaço da alma, mas que vez por outra me faz olhar para os pés meus e dos outros, para encontrar memoriais chinelos de papelão. Nunca encontrei ninguém que usasse esse tipo de chinelos. Será que apenas eu cheguei a tanto?

Esse fato me faz pensar o que provocou na mente de minha mãe a ideia das sandálias. É que paguei muitas outras promessas feitas por ela, mas todas tinham um sentido, uma tradição. Fui com ela a Juazeiro e rezamos no Horto. Fomos a Quitaiús a pé, roubei santos em tempo de seca para devolvê-los em tempo de chuva. Ouvi terço de penitente, fiz visita de cova. Tudo isso, no entanto, alguém, em algum momento já fizera. Mas usar chinelos de papelão, eu fui o único de que tenho notícia.

É tanto que por mais criativo que seja, sempre encontro-me com um modelo anterior. Nada me parece cem por cento criativo. Tenho tentado criar chinelos de papelão em muitas situações mas sempre são chinelos já usados. Outro dia numa passeata de manifestantes contra um governo estadual, havia um cidadão no meio da multidão empunhando um cartaz onde se lia "VENDO UM PASSAT 95", e logo abaixo o telefone para contato. Achei muito criativo, inovador, mas nada a comparar com meus chinelos de papelão.

Será que mitifiquei demais aqueles simples chinelos? Ou será que minha mãe tinha ideias muito criativas que só naquela ocasião conseguiu por uma em prática? Fato é que muitas pessoas transportam seus chinelos de papelão na memória mas vão cobrindo com o manto pesado do tempo e não revelam. Talvez o fato de contar esse episódio que me aconteceu na meninice me faça esquecê-lo da forma como ele me aparece na mente.

Tomei conhecimento que Proust sempre observava os botins das damas e depois os colocava nos seus escritos. Talvez ele tenha mudado a forma de olhar para os pés das damas. A escrita tem esse poder terapêutico e muitos escritores se livram de seus fantasmas, tornando-os personagens de suas narrativas. Agora que contei a história de minha primeira comunhão, alivio a minha sensibilidade de garoto vestido de branco com vela nas mãos e chinelos de papelão. Estou livre do trauma que aquela cena produziu em mim.


FONTE: Jornal Diário do Nordeste - 29/10/13.


 

1 visualização0 comentário

Posts recentes

Ver tudo

Comments


bottom of page