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Carta a Melina

Batista de Lima




Querida Melina, aos três anos de tua vida e mais de seis décadas da minha, tu és neta e eu sou avô. Isso parece ser tudo, mas não é. Os caminhos que tu trilhas por eles eu andei um dia. Não eram tão atapetados quanto agora, mas eram bem parecidos. Naqueles tempos meu avô me escreveu cartas, gritou comigo, apenas utilizando seu exemplo de vida.

Seu olhar de aprovação era uma brisa, quando era de reprovação, era palmada. Aprendi com ele a não dizer nada, como forma de dizer tudo. Seu silêncio era estridente. Assim sendo quero te deixar agora, por escrito, certas coisas que podem te fazer bem ou não te influenciarem em nada, mas ficará o fato de eu passar para ti alguns teréns que tenho guardado.

Começo te dizendo que enquanto dormes, o sol está nascendo como um milagre da criação. Daí que a partir da leitura desta carta não te esqueças de assistir ao nascer do sol, sempre que puder. Afinal, há dias em que as nuvens se acordam antes da gente e tomam conta do céu, cantando cirandas ao amanhecer. Por falar em céu, observa quão imenso é o firmamento. Como é fácil sonhar olhando a imensidão. Cuidado com o aprisionamento entre quatro paredes. "Olha pro céu, meu amor, vê como ele está lindo". Até à noite, não deixes de olhar o céu. As estrelas te esperam piscando e a lua não fez feriado. Elas são tão solitárias que esperam sempre pelo nosso olhar.

Entre os costumes que te deixo, fica o gosto de dormir de rede. Sempre que puderes, deita-te numa rede, de preferência com varanda, por ser mais materna. A rede é uma concha, é um ninho. Nela nos tornamos molusco, nela nos tornamos filhote de pássaro, prestes a alçar voo. A rede é o regaço materno, é colo, é aconchego. A cama retangular, com suas linhas retas, tenta enquadrar os sonhos, que já nascem redondos. E sonho é fundamental para se construirem felicidades.

Sonha, Melina, sonha muito, que é bom para a vida. O sonho nos põe para além das nossas dimensões. Se um dia sonhares contigo própria, tipo um sonho dentro do sonho, poderás te ver, dando-te a volta, ou mergulhando no universo que carregas, riquíssimo mundo que desconheces.

Por falar em riqueza, quero que recebas e preserves meu gosto pela leitura. Existe um mundo além do nosso mundo que é o universo dos livros. Quantas maravilhas já foram escritas e que se põem na nossa estante ao alcance das mãos, e a gente voando para mundos distantes que nos acenam no nosso nariz. Leia, querida, principalmente os poetas. São os poetas que vão mais longe, que se aventuram mais, tanto nas superfícies quanto nas profundidades.

Leia também o chão que a rodeia. Nosso mundo concreto também é um livro aberto, e suas páginas mais singelas são aquelas em que a natureza se inscreveu. Onde estivermos a natureza se faz necessária.

Cultiva, pois, uma árvore. Até uma planta em um jarro nos dá lição de vida. Ela possui os mesmos ciclos de existência que possuímos. E quando puderes, ingressa numa mata fechada e anda entre as árvores. Verás que andas no meio de uma multidão, que ali a vida pulsa e nos dá lições de como bem viver.

Dali podes tirar os frutos que te são tão necessários. Não precisas matar uma árvore para teu alimento. Ela te fornece de graça e continua viva. Procura pois gostar de frutas, de folhas, de sementes. A natureza é suficiente para tua sobrevivência, sem que provoques dores que não gostarias que te provocassem.

Nunca te esqueças de ouvir os mais velhos, eles possuem saberes que te serão úteis. Depois, quando estiveres na escola, procura amar teus professores. Eles são os pais dos filhos que os outros fazem.

Entre eles haverá um professor de História. Atenta bem para os ensinamentos dele, afinal, ele dirá como tudo aconteceu, para deduzires como tudo poderá acontecer.

A partir daí não terás medo da vida, poderás brincar, dançar, cantar com muito divertimento, mas vez por outra visita um hospital ou um cemitério. Além disso não esqueças de beber bastante água e frequentar o mar, andando descalça na areia da praia. Se não fores ao mar, vai a um açude, a um lago, a um rio, a qualquer água. Para isso, preserva as águas.

Minha querida, quando quiseres ser ouvida, não precisas gritar, basta falar com muita convicção. E quando fores vencida por outra pessoa, aperta-lhe a mão, dando-lhe parabéns. E quando ganhares, respeita o que perdeu para ti.

Pratica algum esporte e cultiva a tua saúde. Viaja para onde tiveres vontade, mas não esqueças da viagem primeira que deverá ser feita para dentro de ti. Examina tua consciência. Fortifica-te antes de avaliar o outro. Ouve muita música e não tenhas medo de avião, nem de dentista, nem de médico. Não tenhas medo de nada, tenhas precaução. Respeita as leis e os mais velhos. Quando estiveres sozinha, para enfrentar uma dificuldade, não te abales. Saibas que és superior ao problema.

Agora, Melina, tudo que acabo de te dizer, que não te obrigue a fazê-lo. Podes encontrar modelo de vida melhor que esse que te sugiro. Tudo que acabo de te mostrar está baseado em mim e não em ti, quando fores como eu fui.

Por isso não termino este escrito. Quero deixar em aberto para um dia concluíres. Não posso te dar regras. A vida, cada um a constrói. Meu modelo pode nem te servir, mas para mim tem sido sempre útil. E é a herança que te deixo. Herança que te repasso pois foi a única que herdei e prezo.

Portanto, não te alienes ao que te deixo. Este escrito é apenas um caminho que trilhei e que poderá te servir. Pois na certa continuarás abrindo clareiras na floresta da vida. Estas frases não encerrarão com ponto final, mas sim, com reticências. Continua pois a escrevê-las, ou tu mesma darás o final...


FONTE: Jornal Diário do Nordeste - 10/01/2017.


 

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