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  • Foto do escritorBatista de Lima

Calçada partida ao meio

Atualizado: 13 de mar. de 2019

Batista de Lima


A viúva Inês punha-se numa cadeira quase no meio da porta da frente. Seu ouvido esquerdo ia até à cozinha pegar pedaços de assuntos das mulheres que tapiocavam cafés. O outro ouvido invadia a calçada onde os homens trituravam a vida alheia. De testemunha, só o escuro da noite e uma lamparina teimosa, fustigando a treva com algum relâmpago furtivo ou a luz dos vaga-lumes pirilampeando nos muçambês do terreiro. Eram tempos de chuva e Inês amarrava os assuntos de fora com os de dentro da casa. Eram histórias que entravam molhadas de casa adentro e iam se esquentar do frio de maio na beira do fogão a lenha.

Por aquela porta entravam histórias de uma guerra longe e de uma onça do lombo preto que comia carneiros cevados. Quando o mundo se apequenava de histórias, falava-se de ínguas curadas na areia do riacho ou de quebrantos de meninos amarelos. Eram tragédias muito maiores que a guerra das Europas. Em muitas noites, cobras pediam a palavra e falavam de veneno e cura. Era só mascar o fumo, cuspir na xícara e botar dois dedos de cachaça. Mas era preciso ser curador. Enquanto isso o pródigo sabia da guerra que trouxe de São Paulo, mas o bezerro perdido estava mais morto que os mortos do Dia D. Era assim que o tempo pedia licença para invadir a casa com seu passo lento e constante.

O pródigo trouxe de São Paulo alguns relógios parados e uma lata de pessegada já fora da validade para brigar com as rapaduras. Trouxe também uma fábrica de tecidos instalada no pulmão. Era uma tosse de espantar cachorro velho, tirar o sono da casa e expulsar passarinhos das árvores. Quando não tinha mais o que expelir dos pulmões, foi visitado pelo sobrinho perfumado que falava por cima da cerca. Era uma cerca que dividia a calçada em duas, para que as gentes não chegassem perto do tísico. Por isso que a conversa com o sobrinho rico era feita de palavras que rastejavam pela calçada e pulavam a cerca da separação.

A viúva Inês era mãe do perfumado e cunhada do doente. Dos dois irmãos, filhos únicos do antigo dono da terra, ela já enterrara o mais velho, marido e vítima. Tinha que se livrar do que de longe viera. Por isso que encomendara o caixão ao filho em visita. Foi acertado que o caixão do enterro seria dado antecipado pois o almofadinha ia viajar para Bogotá: A urna mortuária já vinha guardada na corroceria da caminhonete lá fora. Foi só tirar para o tio experimentar. Até travesseiro tinha para descanso da cabeça do futuro morto. Era fornido, todo de madeira de lei e com desenhos de imagens do céu.

A viúva Inês, devota do padroeiro da vila, queria ir com o filho até à igreja do santo em contrição de pecados tantos. Aboletou-se no carro enorme do filho, sem esquecer o véu e o terço para as visitas ao vigário e ao Santo. Não esqueceu de pedir ao filho abastado, o numerário do óbolo da missa, com outra parte para a quermesse e um pouco para a cega Anacleta, que jamais receberia a esmola. Aproveitou estar só com o rebento taludo no carro para falar da resistência do tísico e das muitas glebas de terra, todas quase abandonadas à espera de administrador competente.

Ainda na estrada de barro e a chuva começava trovejada. Não haviam chegado nem à metade da distância, e numa curva lamacenta o carro derrapou, rolando na ribanceira. A viúva Inês quebrou o pescoço na virada. O filho nada sofreu. Estava são e salvo para pedir o caixão do enterro do tio para enterrar sua mãe a viúva Inês da Conceição Moreira. FONTE: Jornal Diário do Nordeste. 12/03/19.

 


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