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Caixa de memórias

Batista de Lima



O livro é ideal para estudantes que conhecem muito do mundo lá fora e não visualizam seu quintal. Arlene Holanda mergulha por esse nosso sertão e conclui que na formação dos atuais municípios cearenses, foram três os fatores marcantes: as fazendas de criar, os lugares de pouso e feiras de gado, e as missões jesuítas. Isso fez com que herança, de origem indígena, se tornasse significativa pelo fato de que nossos nativos se adaptaram mais à pecuária O cearense não preserva sua memória. Temos destruído alguns ícones da nossa cultura, em verdadeiro desrespeito aos nossos ancestrais. Na área literária são poucos aqueles que se debruçaram sobre temas memorialísticos. As incursões mais conhecidas são de Gustavo Barroso, Leonardo Mota, Blanchard Girão, Mozart Soriano Aderaldo, Narcélio Limaverde, Otacílio de Azevedo e Juarez Leitão. Daí que ao surgir algum livro nessa área, desperta nossa curiosidade, principalmente vindo dessa geração nova de escritores como Lira Neto, Raimundo Neto e mais recentemente, Arlene Holanda. Arlene é de Limoeiro do Norte, celeiro de escritores marcantes na literatura cearense. Curiosa e inquieta escritora, também se destaca como ilustradora, diagramadora e ávida pela pesquisa antropológica. Por isso que esse seu livro, editado neste 2009, se torna curioso por mostrar a memória do Ceará através da apresentação de seu patrimônio tangível e intangível. "Caixinha de Memória-Ceará" é o título da obra, que nas suas 144 páginas, da Editora IMEPH, destacam-se além de seu texto, uma rica iconografia que vai de fotos antigas e novas, às ricas ilustrações de Kazane. O livro é ideal para estudantes cearenses que conhecem muito do mundo lá fora e não visualizam seu quintal. Arlene Holanda mergulha por esse nosso sertão e conclui que "na formação dos atuais municípios cearenses, foram três os fatores marcantes: as fazendas de criar, os lugares de pouso e feiras de gado, e as missões jesuítas". Isso fez com que nossa herança cultural, de origem indígena, se tornasse muito significativa pelo fato de que nossos nativos se adaptaram muito mais à pecuária. O índio tornou-se vaqueiro e dele herdamos a rede de dormir, a tapioca, os utensílios de palha, e a cura pela reza. Além disso são muitos os nossos topônimos de origem indígena. Apesar dos nomes indígenas de muitas de nossas cidades, sua arquitetura traz muito da herança portuguesa, como as igrejas, principal construção dessas cidades, e os sobrados azulejados. Mas Arlene Holanda não ficou apenas na herança portuguesa entre nós, ela também apresentou a influência francesa que de tão marcante entre nós, os historiadores batizaram-na de "Bélle Époque". O estilo neoclássico, a arte-noveau, os gradis, vitrais, mármores, esculturas, a perfumaria, os francesismos incorporados ao nosso linguajar, tudo é resultado de pelo menos 75 anos dessa fase, de 1850 a 1925. Entretanto, o mais interessante nesse livro de Arlene é nosso retorno à cena da meninice sertaneja e o contato com as coisas da época. Aí vão surgindo a urupema, o penico, a lamparina, o alecrim, o óleo de rícino, a garrafada, a rabeca, o cabresto, o gibão, o tamborete, o capão, a farinha, o capote, o cetim e o fustão. Muitos desses ícones vêm fotografados ou desenhados por Kazane. São redes, alpendres, potes, malas, baús, frascos, giraus, chocalhos, bornais, esporas, peitorais, panelas, caibros, biqueiras, sentinas, cantareiras, caritós, cambitos, bules, tipoias, baladeiras, carrapetas, petecas, calungas, pífanos, rapaduras, buchadas, jerimuns e canjicas. O misticismo nordestino é tão forte que os principais núcleos de fanáticos do Brasil se concentraram nesta região. É uma população que acredita em rezadeira, botija, maldição, praga, quebranto, catimbó, má palavra, sangue ruim, mau olhado, apertada hora, patuá, encosto e feitiço. O livro da capa preta de São Cipriano, o Lunário Perpétuo e os almanaques dos profetas das chuvas, vendidos em feiras, feitos em forma de cordel, estavam ao alcance do sertanejo carente de proteção terrena e pleno de divinas crenças. Quantas mordidas de cobra não foram curadas com meizinha de curador. Era mascar uma pele de fumo, cuspir no frasco e colocar um pouco de cachaça que depois de mexer era só enviar para o mordido e esperar a cura. Quantas ínguas não foram curadas no rastro que o doente fixava na areia branca do riacho seco. Aliás era naquela areia que o mandingueiro conseguia até capar no rastro os estupradores. Se o riacho estivesse botando água, o fugitivo vestia a camisa ao avesso, atravessava de três pulos e não tinha mais rastreador nem policial que o encontrassem. O cabra ficava transparente. Os raizeiros atravessavam os sertões curando tudo na base de produtos da flora. Os miçangueiros levavam cargas de especiarias do reino e transportavam alvíssaras para os rincões. Arlene Holanda vasculha esse universo, feito cigana mexedeira, que bole com tudo, escrafuncha o passado, jogando na nossa vista, as coisas e suas palavras representantes. Garimpeira dessas jóias da nossa cultura, ela vai buscar nos rituais de nossos ancestrais, um alerta para a geração de hoje, que esqueceu os comportamentos corretos para as variadas ocasiões. Esse tempo que Arlene retrata foi marcado pelo poder da palavra dada. Como poucos escreviam, a palavra empenhada era questão de honra. Quebrar um trato, ou faltar com a palavra era sinal de guerra. Foi por isso que em nosso Ceará, Montes e Feitosas se mataram por décadas de fogo cerrado. Araújos e Maciéis, também. Por aí vão aparecendo os Augustos, os Arrudas, os Cunha Pereira, os Holanda Cavalcante, os Lobo Maia, os Diógenes e outros clãs que ferraram suas palavras com pólvora de bacamarte. O livro de Arlene Holanda é uma delícia de retorno. Capítulo especial é quando trata do ensino/aprendizagem. As sabatinas, a palmatória, a carta de ABC e a tabuada alicerçaram gerações de intelectuais com métodos hoje condenados. O ditado e a cópia não se usam mais. A Crestomatia foi aposentada. A memória, no entanto, nunca se aposenta, ela está viva, graças a pesquisadores como Arlene Holanda.

 

22/12/2009.

 

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