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Café com paisagem

Batista de Lima


Um café com paisagem carece muito mais de verde que de pressa. Que as árvores nos observem, se possível frutíferas.

(...) Como é belo o som de uma folha que se desprende do galho e baila sob a melodia do seu próprio cair. E um chão de outono? Nada mais belo que flores vestindo a terra. Nada mais belo que fazer um café como quem planta suspiros. Depois, pescar da paisagem os enfeites da mesa.

Exorbitar é preciso, quando se toma café com paisagem. É bom começar por perscrutar o estalar do quebrar da barra. Captar os gemidos da aurora ao ser rompida por aquele sol que ensanguenta a manhã no nascer do dia. Daí que o café precisa ser quente para, em conluio com o sol, cozinhar a paisagem que precisamos deglutir. Uma serra ao longe pode ser uma lembrança do olhar de musa que inspira e dói.

Um café com paisagem carece muito mais de verde que de pressa. Que as árvores nos observem, se possível frutíferas. Que o vento seja brisa e os olhos avistem profundezas nas coisas rasas. Se algum grilo cantar, que seja o início de uma sinfonia onde tudo cante e encante. Como é belo o som de uma folha que se desprende do galho e baila sob a melodia do seu próprio cair. E um chão de outono? Nada mais belo que flores vestindo a terra. Nada mais belo que fazer um café como quem planta suspiros. Depois, pescar da paisagem os enfeites da mesa.

Se no café houver cocada, que seja feita com mais alma do que coco, como sempre fez Vitalina, antes de sossegar no sétimo dia, como fez Deus na criação. Quanto à companhia, é indispensável que haja alguém no saboreio de tudo. Que seja alguém conversador, como Bonifácio Bom de Fala com suas histórias absurdas sem princípio, nem fim. Pode ser um pescador com histórias de caçadas, ou um caçador com histórias de pescarias. O importante é que seja alguém que fale muito, mas que ouça muito mais.

Café com paisagem precisa de manteiga que seja da terra. Mas precisa também de cafuné passado na ternura e temperado com muitas colheres de afeto. Uma cochilada sem propósito é de fazer muito bem porque paisagem não se come, paisagem é de se beber e aquilo que se bebe dá sonolência nas carnes. Nessas horas de beberagens, é bom um toque de mãos pois as mãos foram feitas para viverem de toques e que depois que se tocam são como sinos que despertam muitas forças que nos moram. Essas forças que nos moram são paisagens que namoram das pontas dos nossos dedos aos dedos das nossas almas.

Por falar nessas coisas escondidas, nós que tomamos café e bebemos paisagens, precisamos ir buscar, nos cafundós que carregamos bem fundo, certos sais, certos ais, que de oitiva nos dormem. Essas coisas que fingem ser coisas adormecidas temperam qualquer café, colorem qualquer paisagem, basta que se tirem as tampas das chaleiras postas em fervura, nos fogões que transportamos. Afinal, um café sem quenturas, uma paisagem sem calores é uma mesa que se põe para comensais que não chegam. É como casa que se fez, mas se esqueceu do fogão. É como fogão que esqueceu a lenha. É como lenha que não se atiça pela falta que o fogo faz.

Café com paisagem não tem hora, não tem dia, não tem lua. Tem muita fome, dessas fomes que não precisam ser saciadas. É preciso de fome de ver, pois uma planície estendida para o espreguiçar do olhar e refestelamento dos olhos é coisa das mais necessárias. Entretanto, uma cordilheira dessas que se postam lá longe é bom que fique de guarda pois essas coisas de avistar nem sempre bem se comportam. Outra coisa necessária é a mesa confidente que segura nossos braços e guarda nossos segredos. É a mesa tão presente, que mesmo vazia estando, de repente ela se enche, pois nosso pensar não pensa mesa, que não seja sempre cheia.

Tem certos dias entanto, que o café para ser servido, precisa primeiro cheirar, das narinas aos compartimentos que cada casa retém. Afinal, tudo aquilo que deglutimos com gosto, primeiro tem como fiscal, nosso nariz exigente. Se uma janela se entreabe ou uma porta se desprevine e uma frecha se escancarava é gostoso o cheiro da terra que lá de fora nos entra e, no aconchego da casa, se casa com o cheiro do moca. É que café que muito cheira e mais gostoso se põe é de se chamar de moca que é a terra de onde ele veio, das Arábias aos nossos bules.

Bule também é preciso, para prender o café quente que parece cabrito preto, que se não amarrar com jeito se liberta e vai pastar. Bule também é um cofre onde a surpresa se amarra pois quem está vendo não vê se está seco ou repleto, daí que ele se enche todo para alegria da sede. Dentro dele pode estar todo o café que foi posto mas também pode reter tudo o que a paisagem nos dá, afinal coisas fechadas sempre cheias se postam. Não existe bule seco se com tampa vem tampado. Só existe cofre seco se aberto se deixar.

Café com paisagem se faz com muita vista e pouco pó pois os sentidos se unem na culinária dos ritos. Primeiro se come com os olhos depois se fareja com fome aquilo que na boca se almeja. Depois precisamos ter ao lado alguém que não se enraiveça com os reveses da nossa gula. Um café com paisagem precisa de lonjuras postas à mesa, se possível algumas juras, até mesmo certas conjuras que entre dois se conjuram. É bom não esquecer que é preciso o uso das palavras certas, dessas que nascem felizes que não se dizem, suspiram. Em um café com paisagem, falar não é tão importante quanto exorbitar é preciso.


jbatista@unifor.br

29/06/10.

 

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