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Bonifácio e o Kit Onda


Batista de Lima



No domingo à tarde, Bonifácio se anuncia mais uma vez no interfone. Isso porque na primeira vez, ano passado, ele viera me cobrar o quinto para a sua igreja nova, e na segunda, em julho, viera me pedir assinatura para registrar um partido político. Dessa vez, era seu objetivo me salvar da onda. Ele já entrou em casa com feições contristadas diante do iminente desastre do qual eu seria uma das vítimas. Mas, vinha com ele a solução. Podia irromper vulcão nas canárias, podia vir onda de 150 metros, eu estaria a salvo com um dos seus conjuntos de apetrechos contra sinistros. Ali estava a solução.

Primeiramente, fez um introito, lembrando nosso parentesco de quinto grau e nossas origens comuns do Sertão. Depois retirou da pasta encebada um calhamaço de folhas de papel, reclames, prospectos e santinhos para me apresentar os caminhos da salvação. Tinha kit de salvamento de todos os preços. Só era preciso receber um sinal, preencher uma ficha com endereço, CPF e RG para receber em casa o que pedido fosse. Havia desde câmara de ar de pneus de fusca a helicóptero de sobrevoo. Era importante que eu ouvisse a utilidade de cada um para fazer a escolha. Era preciso saber qual minha renda mensal para distribuir prestações.

Diante de tudo isso, que eu tirasse cópia dos comprovantes salariais que, no dia seguinte, viria alguém apanhá-la. Avisou ainda que só dispunha de pouquíssimas unidades, pois o distribuidor paulista não estava dando conta dos milhares de pedidos diante da iminente catástrofe. A onda chegaria devastadora após oito horas do estouro do vulcão. Essas oito horas eram cruciais para que me pusesse a salvo. Havia uma arca para a família inteira com compartimentos para animais domésticos. Ela ficaria sobre a serra de Maranguape, pronta para receber seu comprador com família e tudo.

O mais caro, entretanto, era o helicóptero que alçaria voo aos primeiros sinais da onda. Para isso ele estaria pousado no alto de um edifício com visão para o mar. Toda a invasão das águas seria vista de cima, com direito a câmeras para filmagem. O mais importante é que durante todo o evento havia bebidas e comidas à disposição dos passageiros. O pouso pós-fenômeno seria numa das serras próximas. O preço era altíssimo e se destinava, o aluguel, apenas a elementos familiares.

Depois dessas explanações, pedi sugestões de outro tipo de kit que tivesse preço acessível a pessoas de menor poder aquisitivo. Ele falou em navios de médio porte que seriam adaptados para um tipo de bolha impermeável que flutuaria em qualquer situação e que acomodaria cada um, mais de 100 pessoas com serviço de bordo servido por garçonetes de perna grossa. Ali haveria bebidas e croquetes por conta.

Depois de muita insistência, ele me apresentou equipamentos de preços módicos. Falou de coletes de isopor, das câmaras de ar, mas deixou de mostrar algo ainda mais em conta. Como nada havia me agradado, dado o alto preço das unidades, ele apelou para as cabacinhas. Eram duas cabaças-de-colo ligadas por um pedaço de corda que fariam com que a pessoa flutuasse. Era um modelo que usávamos no açude do pé da serra no nosso tempo de aprendiz de natação. Seria o kit mais barato, mas vinha com o selo do fabricante.

Todas essas negociações de compra e venda, para que não naufragassem, eram entremeadas de explicações fantasmagóricas de como seria o grande desastre. A onda viria com a velocidade de um avião supersônico. A questão não era apenas o tamanho da coisa, era também sua velocidade devastadora. O demônio viria surfando na cumeeira da pororoca infernal, nascida nas profundezas da terra, lá onde o inferno se baseava. Era um castigo dos infernos caindo nas cabeças de uma humanidade pecadora. Era preciso também adquirir velas bentas e cordões de São Francisco.

Certo é que depois de muitas explicações e sermões sebastianistas, Bonifácio se foi com 10% da compra que fiz das cabacinhas de flutuação, umas camisas puídas e um tênis furado que lhe presenteei. Fato é que passada a onda da Onda, escapamos todos, menos Bonifácio, o bom de fala, que anda desaparecido com seus 10% levados de muitos encantos enganados. Entretanto, alguém me disse que o encontrou numa praia deserta, distribuindo postes alugados e pregando entre os nativos a chegada em breve da luz elétrica. É bem verdade que lá a luz não chegará, mas os lotes de terra que ele já vendeu duplicaram de preço, isso pelo menos enquanto ele não tiver que devolver os postes que alugou.


FONTE: Jornal Diário do Nordeste - 17/12/13.


 

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