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Blanchard Girão e as ´coca-colas´

Batista de Lima



A população de Fortaleza, em 1940, girava em torno de 200 mil pessoas. Era uma população conservadora que tinha como um dos principais órgãos de mídia, o jornal ´O Nordeste´, órgão de orientação religiosa, vinculado à nossa Arquidiocese. O Jacarecanga era o bairro chique da cidade e a Praça do Ferreira era o coração pulsante da capital do Ceará. O que era ´chic´ vinha da França, inclusive, a língua estrangeira mais falada entre os pacatos cidadãos fortalezenses. Tudo viria a mudar, no entanto, com o início da Segunda Guerra Mundial. A guerra se iniciara em 1º de setembro de 1939, quando a forças militares da Alemanha invadiram a Polônia. O Brasil vinha se mantendo neutro até agosto de 1942, quando declarou guerra à Alemanha e à Itália. Antes dessa declaração de guerra 12 navios brasileiros já haviam sido afundados, do total de 32 que foram destruídos ao longo do conflito. O saldo dessas 32 embarcações brasileiras destruídas foi de 972 mortos. Só no afundamento do ´Baependi´, entre Salvador e Recife, morreram 270 pessoas, configurando-se na maior tragédia marítima brasileira na Segunda Guerra. Essas informações e outras mais constam do livro A invasão dos cabelos dourados, de Blanchard Girão, que traz como sub-título ´Do uso aos abusos no tempo das coca-colas´. Essa publicação da ABC Editora, neste 2008, traz 195 páginas de memórias do autor, que viveu intensamente aquela época, mas traz também fatos históricos já amplamente conhecidos. O lado interessante do livro fica por conta das revelações obtidas pelo autor. São informações que tiram dúvidas que ainda tínhamos sobre aqueles episódios. Por exemplo, comenta-se ainda hoje que foram os americanos que afundaram os nossos navios para entrarmos na guerra. Blanchard comprova que esses afundamentos foram perpetrados pelos submarinos alemães. A revelação mais curiosa feita no livro é sobre a reação americana frente à resistência brasileira de entrar na guerra, diante da estratégica posição de nosso litoral para os aliados vencerem a guerra no Atlântico Sul e chegarem à África onde ocorriam sangrentas batalhas. Daí, conforme o autor: ´O Plano Pot of Gold, montado pelos Estados Maiores do Exército e da Marinha dos Estados Unidos, previa o envio de 10 mil homens por via aérea e 100 mil por via marítima, amparado por quatro couraçados, dois porta-aviões, nove cruzadores e três esquadrões de contratorpedeiros, e deveria ocupar Natal, Recife, Belém e Salvador, entendendo-se posteriormente a Fortaleza, São Luís e a Ilha de Fernando de Noronha´. Essa invasão não foi feita de surpresa porque o Brasil entrou na guerra e concordou em servir de base para as forças aliadas. Acontece que a invasão oficializada, dos ´cabelos dourados´, corresponde mais ou menos à anteriormente planejada pelos americanos. O que o livro mostra também é o conjunto das transformações sociais ocorridas no seio daquela população provinciana. Aqui estiveram 25 mil soldados americanos, distantes de suas esposas e de suas namoradas, e diante da incerteza do futuro, como combatentes. Na época o autor era um jovem estudante secundarista, mas já atuava no jornalismo. Daí se lembrar de que nas negociações entre Roosevelt e Vargas, para construção de bases no nosso país, ficou acertado que os americanos financiariam a instalação de uma siderúrgica no Brasil. Chegando aqui, os americanos se instalaram em duas bases, a do Cocorote (Coco Route) e a do Pici. Iniciou-se então a transformação social da cidade que a esse tempo só possuía uma emissora de rádio, a PRE-9. O Ceará enfrentou dramática seca em 1942. E coincidindo com a campanha getulista em torno da produção da borracha na Amazônia, nossa região exportou 60 mil homens para compor o famigerado ´Exército da Borracha´. Dos arigós (nome dado a esses retirantes) poucos retornaram do Inferno Verde, como ficou conhecida a Amazônia, afinal calcula-se que pelo menos 31.000 mortos foi o saldo desse exército. Cinquenta por cento desses retirantes que partiram de nossa região eram cearenses. Os cearenses que aqui ficaram eram como que uma raça menor diante dos ´filhos do Tio Sam, loiros ou ruivos, cabelos de fogo. Altos, olhos geralmente azuis, porte atlético´. Trouxeram a novidade da coca-cola que pôs de lado o refresco de pega-pinto ou de murici. A cerveja em lata era outra novidade, os cigarros perfumosos eram Camel e Pall-Mall, a moeda era o dólar e os ambiente que entraram em ebulição foram a lanchonete ´Jangadeiro´ e os prostíbulos ´Abrigo Anti Aéreo´, ´Tabariz´, a ´Margot´, a ´Gaguinha´, a ´Império´. Outros locais mais sociáveis eram o restaurante Ramon e a Vila Morena onde funcionava o Clube dos Oficiais e que depois se chamaria de Estoril. Foi ali onde mais funcionou o apelo da coca-cola e onde mais artistas americanos se apresentaram. Fortaleza, nas palavras de Blanchard Girão, ´americanizou-se´, ´americanhalhou-se´. Tudo isso trouxe-nos profundas transformações sociais e então o autor mostra a influência americana, como propaganda, que vinha no rastro do cinema. Nos cinemas Diogo, Moderno, Majestic, Luz, Rex, Ventura e Benfica desfilavam Clark Gable, Robert Taylor, Tyrone Pawer, John Weyne, Henry Fonda, Victor Mature e Randolph Scott. ´Para as jovens nativas, aqueles guapos rapazes em suas esportivas fardas de soldados e marinheiros eram a própria encarnação dos heróis das telas´. Esse livro de Blanchard Girão é um documento histórico e ao mesmo tempo um monumento memorialístico de um jovem que viveu intensamente aquele momento, a partir principalmente do verão de 42. E como ele afirma muito sabiamente, a nossa Fortaleza, possui três momentos distintos na sua história: antes da guerra, durante a guerra e depois da guerra.

 

29/07/2008.

 

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