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  • Foto do escritorBatista de Lima

Aviso feito navalha

Batista de Lima




A primeira segunda-feira de agosto é um aviso, principalmente com escuras nuvens. E se não houver canto do galo para tecer a madrugada, não haverá dia. Um dia sem madrugada não é dia, nem a madrugada se instaura sem o canto do galo. Nem a lua consegue luar.

A falta de sol é um prenúncio. Um dia sem sol é um corpo sem sangue estendido na manhã. A manhã é nova como criança, e isso é um alerta. Como são um chamado, o horóscopo sobre a mesa, o relógio na parede e uma tiara no sofá. Nunca um café será tão adeus, se não houver fumaça, nem quentura, nem textura.

Uma manhã sem café se desperfuma, desfolha o dia, e isso é um princípio. Maior que isso tudo é uma xícara partir-se, espatifando a manhã que não quer amanhecer. E o gato na janela é uma porta para a indecisão. Se entrar ele morre sem manhã, se sair, ele anoitece. A janela é um limiar. O gato é um pêndulo. A claridade é uma espada. A sombra promove o galope do estertor de um suspiro.

Sobre a mesa um jarro de mãos. Um baralho cortado retalha o coração. Cada carta é um amontoado de mãos. E as flores que esmorecem estampando o pano da mesa parecem um cemitério de esperanças. A mesa é um congresso de mãos, um falatório engarrafado, um anúncio, um reclame. A mesa é uma campa para o infanticídio da manhã pagã.

Não há reza que dê jeito na manhã sem sopro e isso é um distúrbio. É muito triste uma manhã que não se quer tarde, como a falta de fogo no fogão, a cinza cezindo as crinas do telhado como se fora um galope esculpido antes do potro. Nada se mexe numa manhã que não se quer tarde. Nada se mexe numa segunda que não se quer terça. Nada se mexe numa sombra que não se quer claridade. Nada se farta de alguma coisa que não se quer vida. Bem que você devia ter voltado. Mas toda indecisão é um aviso feito navalha.

Por isso tudo é que a primeira segunda-feira de agosto não é dia para moagem, nem para começar namoro. Se houver pescaria, os peixes vão se esconder. A barba deverá ser feita no dia seguinte, nem é bom tomar banho em águas fundas, nem em mar revolto. Se chover nesse dia, não recolha água das biqueiras, nem tome banho de chuva. É preciso ter cuidado com coice de burro e com estrada de curva. As abelhas não sairão de suas colmeias e os pássaros farão feriado, deitados nos seus ninhos. É um dia para comidas leves e sonhos longos sujeitos a pesadelos.

É na primeira segunda-feira de agosto que o vento para e não permite à brisa brisar nossos contornos. É um dia em que o gato corta o terreiro andando de costas para não ver sua sombra. As vacas não berram pelos seus filhos e as galinhas não ciscam o quintal com medo de ressuscitarem raposas. É um dia em que as perguntas procuram respostas mas só encontram pontos de interrogação crucificados nas encruzilhadas. É também nesse dia em que as cores se concentram nos seus casulos e tornam a tarde de um esparrame gris.

A primeira segunda-feira de agosto, de tão mal comportada, já de véspera, pula do calendário e sai fechando as portas e adiando eventos. As casas baixam suas sobranceiras e os alpendres se despovoam. As notícias não andam e no terreiro o galo não canta pois do poleiro não arreda pé, na proteção de suas galinhas. E na última vez em que o engenho funcionou nesse dia, quebrou um bolinete e machucou a mão do dono. Nesse mesmo dia o fogo não acendeu, as caldeiras não ferveram e a pouca garapa que tinha chegou a azedar antes que desse meio dia.

Não se sabe ainda porque um dia navalha o resto do ano. Poderia ser uma sexta-feira, ou um domingo qualquer. Mas não, é essa segunda-feira, a primeira daquele mês que não se pronuncia a gosto. É tanto que não há vacina para esse dia, não há cura que o retenha. Não há rezadeira que cure, que tire esse quebranto, essa espinhela caída, esse caboge, esse caé de um simples dia como os outros. Acontece que botaram na cabeça da gente que é um dia aziago, quando na realidade é um pobre dia, tão simples quanto os outros.


FONTE: Jornal Diário do Nordeste - 15/03/2016.


 

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