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Ave, saudade

Batista de Lima


Há certos dias que foram feitos para judiar. São dias que se instalam silenciosos dentro da gente e perguntam onde a vida se escondeu. Não adianta bater com a cabeça na parede, pois não há paredes, nem cabeças.

Nessas horas é preciso que ninguém nos tire de nós, pois ficamos em retiro com os outros que somos e esquecemos nos outros dias. E é gostoso até encontrar, nos nossos cafundós, alguns de nós que não conhecíamos.

Há certos dias em que a gente sente uma grande saudade do mundo. Uma vontade imensa de chorar um choro mesmo sem lágrima, ou cantar uma música que não tenha fim. É como se as coisas não tivessem princípio e portanto não tivessem fim. Como se tudo fosse continuidade. São dias de manhãs paradas, tardes gris e noites nem se fala. Nesses dias, nem Drummond nos salva e a TV se anula. São dias sem santos protetores, sem anjos da guarda, e uma fome enorme sem vontade de comer.

Há certos dias que foram feitos para judiar. São dias que se instalam silenciosos dentro da gente e perguntam onde a vida se escondeu. E ficam roendo o que nos resta de nós. Não adianta bater com a cabeça na parede, pois não há paredes, nem cabeças. Não adianta pular da ponte e se afogar no rio, pois as pontes se partiram e os rios secaram. Nesses dias que não são muitos mas que são sem fim, a gente se pergunta por a gente, bate no portão da frente de nossa própria casa e perde o sabor do chá. São dias de unhas grandes, rugas proeminentes, pés rachados e uma dor esquisita pendurada nos cabides da alma. Depois querem o nosso sorriso, nossa palavra amiga, um bom dia, um muito obrigado. Não nos permitem chorar o choro dos anjos e casar nossa tristeza com a dor dos inválidos. Nesses dias só há contas a pagar, missas de sétimo dia, visitas de cova, e o sétimo palmo de olho grande e aberto, espreitando nosso andar.

Há certos dias em que o amor se esconde no porão e a esperança viaja de trem para a Antártida. São dias de quieta espera, de café frio e leite derramado. E o pior é que o mundo compartilha nossa desdita, finge que não nos vê e manda chuva à tarde. São dias de lembranças que se envergonham de aparecer, mas nos mandam nuvens densas e um mar sem ondas. Dias de barba por fazer e cabelo que se despenteia, mesmo com a greve dos ventos e a convalescença dos sonhos.

Há certos dias em que deveríamos tirar férias de viver por 24 horas e voltar na manhã seguinte, ressuscitados por melodias passarinhas. No entanto esses são os dias que mais duram e em que os joelhos mais doem e os pássaros silenciam e tudo o mais para, aumentando nossa litania.

Há certos dias em que a saudade nos desperta cobrando dívidas. Traz pelo braço o menino que fomos, os pais que tivemos, os amigos que se foram e os irmãos que nos aparecem com nossos nervos em bandejas de espinhos. Nesses dias os dentes crescem, os nossos ossos nos mostram fraturas e as paredes se aproximam, encolhendo o quarto e estreitando a casa. Nesses dias só os mortos cantam e a gente se pergunta se a eternidade está à mesa em terrinas de silêncio. Mas nos conforma a inocência dos alegres, o riso fácil das megeras e o fluxo de palavras que brotam de nossa mente para cantar o hino da tristeza e erguer o tratado da solidão. Só mesmo a alma forte para resistir a esses dias de salmoura do céu e vingança das horas. Mas tenho certeza de que alguma coisa ficará gravada, provando que aqui estivemos e fomos crianças, depois de anjos, e que fomos árvores, frutos, sementes e cachoeiras. Tenho certeza de que essa saudade do mundo é um jacarandá que um dia fui e a essas horas o machado o fere. Mas não preciso esperar tanto esse momento denso, nem meu avô voltar do esquecimento para me curar da tristeza. Nem precisa ninguém me ninar com canções que foram alegres, se minha tristeza de agora é um patrimônio que também quero guardar.

Tem certos dias em que a gente mais se pertence. Nessas horas é preciso que ninguém nos tire de nós, pois ficamos em retiro com os outros que somos e esquecemos nos outros dias. E é gostoso até encontrar, nos nossos cafundós, alguns de nós que não conhecíamos. Nossos rincões nos esperam e não precisam desse mundo aqui de fora para mostrarem suas faces.

Há certos dias em que o silêncio é tão grande que dói nos nossos ouvidos a estridência do seu som. Nesses dias, quanto mais nos escondermos, mais nos encontramos grão de areia entre dunas, gota d´água no oceano. São dias de música travosa, banana verde, arroz sem sal e tropeço na quina da mesa. Nesses dias, essa saudade do mundo goteja pingos de ferro, nas pedras que crescem nos caminhos. São dias de alegria dos retratos da parede, vingança dos baús e florescer das tumbas nos campos santos.

Há certos dias em que é preciso amar a dor e topar com a segunda-feira em pleno sábado, sentir a acidez da chuva que chegou sem brisa, e dialogar com a voz que teima em ficar calada. Nesses dias é bom nadar de costas, contar insetos e ruminar como bicho, as horas que se encrespam. Nesses dias não adianta pegar o bonde, dançar um tango nem comer maçã. Mas é possível escapar da sede e remendar as horas no tecido do dia. É possível chegar ao porto, do naufrágio, em fuga. Nesses dias é possível agarrar a palavra pelo rabo, montar no lombo da metáfora e cravar, com letras de ternura, essa sede de viver, que vislumbra lá onde a vista alcança, um pocinho de salvadora esperança. Ave, palavra! Ave, saudade. Ave!


jbatista@unifor.br

05/01/10.

 

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