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Atualidade de “Vidas Secas”

Batista de Lima


O livro “Vidas Secas”, de Graciliano Ramos, foi publicado em 1938. Falar sobre esse livro oitentão não é fácil. Não é fácil também falar sobre Graciliano Ramos. Esse alagoano era um homem sem mesuras. Sua fala ossuda é de um sertanejo perdido numa capoeira seca em busca de uma cabra com fome. O máximo que falou na vida está escrito nos seus livros. “Vidas Secas” é seu discurso principal. Ali ele esculpiu uma cachorra humana e uma família animalizada. Baleia é gente, Fabiano é bicho.

A intenção primeira de Graciliano era dar, a essa sua principal obra, o título de “O Mundo coberto de penas”. Aconselhado pelo editor, ele aquiesceu em mudar o nome. Assim, “Vidas Secas” saiu publicado pela Editora José Olympio, numa edição de mil exemplares. Seu personagem principal é a seca, depois vem Fabiano, uma criatura despojada de seu bem principal, a linguagem. Daí que em seu itinerário, ele tenta resgatá-la nos seus circunstantes: seus filhos, sua mulher e em sua cachorra. Baleia tem nome, os dois filhos, não. Eles são tratados apenas como o menino mais velho e o mais novo.

Um dos motivos do afeto para com Baleia se fundamenta no fato de que a cachorra conseguia caçar pequenos animais para alimento da família retirante. Daí se tornar um elemento vital na saga dos quatro familiares migrantes. Portanto, em dois episódios, o autor se esmera em descrever caracteres da cachorra. O primeiro é o despertar de Baleia ao nascer do sol. Ela dorme em uma pequena cova que cavara no terreiro. Quando os primeiros raios do sol caem sobre o corpo, ela se levanta aos poucos, mexe-se toda para tirar a poeira, se espreguiça como gente, olha em direção ao sol e abre a boca, bocejando. Provoca dessa forma um belo quadro de finura plástica.

Outro momento pungente ocorre quando é preciso sacrificar a cachorra doente. O tiro da espingarda de Fabiano não é fatal, e Baleia tenta fugir arrastando os quartos com o ferimento, tendo o retirante de terminar a execução. Esses dois episódios foram um sacrifício para as filmagens de Nelson Pereira dos Santos, em 1953. Uma semana inteira foi gasta para captar o sublime despertar da cachorra. Um dia, o sol nascia encoberto pelas nuvens. Noutro, a cachorra artista não executava o ritual. Teve um dia que neblinou. Já havia quase uma semana em que a equipe de filmagens tentava captar o despertar como está no livro. Finalmente no quinto dia funcionou a filmagem de pouco mais de um minuto.

Da mesma forma, foi de extrema dificuldade a filmagem, no mesmo filme, da morte de Baleia. Entretanto tudo foi feito com muito cuidado com a cadela que fez o papel de Baleia. Mesmo assim a Sociedade Protetora dos Animais fez seu protesto contra a cena do sacrifício. Isso tudo porque o realismo com que Graciliano trabalha seus personagens torna difícil sua captação filmada. Afinal, o autor trata tudo de forma extremada, meticulosa e sem reparos. Esse comportamento também ocorre no conjunto de seus livros, o que fica, em qualquer um deles, difícil a reprodução em outras mídias.

Da sua produção literária, “Vidas Secas” tem se configurado como a mais significativa obra. Fabiano, antes preso ao patrão, torna-se preso à família. Daí ser vítima, sempre atrelado a alguma circunstância alienante como é o caso do soldado amarelo, contra o qual não pode reagir. Os problemas que levam às limitações existenciais daquela família dão à obra uma atmosfera de realismo crítico. Assim sendo, transportando aquela situação oitentona para os dias atuais, verifica-se que no Nordeste ainda persistem muitas situações similares, infelizmente. É aí que reside a atualidade de “Vidas Secas”.


FONTE: Diário do Nordeste - 11/12/2018.


 

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