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Assim falava Sipaúbas

Batista de Lima


Dona Margarida Maria, depois que ficou viúva, escrevia uma carta diária para o marido e colocava no correio, com o endereço do cemitério, mas nunca recebeu resposta. Seu filho Zé Pequeno comprou um violão, quando ficou grande, passou sessenta anos na afinação. No dia que tocou a primeira música, morreu do coração. Mundeiro de Dona Tetê gostava de espremer espinhas. Acabou com todas que possuía no rosto, depois aprendeu a espremer as das costas, que também se acabaram. Aí saiu pelas estradas ensinando aos jovens a arte de espremer espinhas.

Zé de Seu Né saiu da Malhada Bonita para recolher pedaços de nuvens que encostavam na serra. Quando passou em Sipaúbas, já estava com os caçuás quase cheios de uma coisa algodoada. Recolheu alguns meninos e continuou na sua colheita. Os meninos voltaram entristecidos, ele continuou atrás das nuvens. A última notícia chegada, é que foi visto na Bolívia, de espreita numa cordilheira, com um balaio cheio de penugens de nuvens. Nunca mais a Malhada foi Bonita e as nuvens se envergonharam de enfeitar serras em Sipaúbas.

Antônio Francisco, vulgo Pirilampo, preferia ser chamado de Vaga-lume, o eletricista. Já se metia com eletricidade muito antes da luz chegar a Sipaúbas. Contava histórias que davam choque. Iluminava-se todo quando falava de lâmpadas. Era inimigo de lamparinas. Mas um dia a luz chegou de poste em riste. Antônio Francisco virou carvão entre os fios da alta tensão. Sua mãe lhe fez um túmulo em que mandou pintar em cores vivas uma lâmpada de trezentas velas com o vidro espatifado. Dizem que dali, à noite, brota luz incandescente.

Macário de Sula, quando chegou de São Paulo, trouxe uma máquina fotográfica. Foi aí que começou a fotografar Sipaúbas. Primeiro mirou nas casas, depois nas gentes. Passava o dia com a Kodak na mão, vasculhando as reentrâncias das coisas, o andar das pessoas, o cangote das moças, o voar dos pássaros, o rosto dos velhos, os úberes das vacas. Depois começou a fotografar o vento, a escuridão e o silêncio. Chegou a fotografar a mente do coronel Anastácio e o pensamento do padre Vitoriano. Foram tantas coisas reveladas dos mistérios das cabeças que numa manhã de outubro apareceu espetado numa estaca de aroeira.

Sipaúbas, certo dia, foi contaminada pelo futebol. Começou com bolinhas de rebenta-boi, nos terreiros das casas. Depois evoluiu para bola de meia e, em seguida, para bexiga de boi. Mas a grande evolução foi quando um seminarista, depois de muito esforço, conseguiu comprar na Telha, uma bola de couro número três. Com a bola, foi fácil arranjar os jogadores. O difícil foi conseguir o campo. Conseguiu-se então que o vigário liberasse a Praça da Igreja, a única do lugar. A bola quebrava portas, feria senhoras, entrava na igreja. Foi então arranjado um campo com uma mangueira quase no meio e cercado de jurema.

Depois de quase dois anos de treinamento foi possível dar nome ao time de Sipaúbas: SEC, Sipaúbas Esporte Clube, arranjar um presidente e formar a seleção. Onze jogadores foram escolhidos: Cotó, Ranheta, Facada e Dá na Mãe; Contra Deus, Cachorrão, Fiapo e Urtiga, Cicatriz, Chibata e Macambira. Era armado 443. Após um ano de jogos fora de casa, dois jogadores estavam presos, um fora assassinado, três quebraram as pernas, outros fugiram para São Paulo, ameaçados de morte. Assim o time acabou-se e o futebol não vingou em Sipaúbas.

O progresso, no entanto, havia impregnado o lugar com a instalação da primeira lanchonete. O sanduíche virou febre na cidade. Homem, mulher e menino e os empregados do parque São Severino, todo mundo aderiu à lanchonete. O proprietário era um coreano, que viera com o Circo de Fuxico e ficara ancorado nos encantos de uma nativa. Suas carnes no pão eram macias como polpa de manga. Mas o coreano nunca comprava carne no pequeno açougue e em compensação, coincidentemente, os cachorros e os gatos dos sipaubenses estavam em extinção. Foi aí que Zeca Bernardo começou a botar sentido nos seus dois caçadores de tatu. Eram "rompe ferro" e "rompe nuvem". Eram cachorros pretos como a noite, valentes feito feras e odiavam o coreano. Até que um dia, um apareceu sangrando, com um anzol enganchado nas presas. Era o anzol com que o coreano pescava traíras no açude do Mondubim, mas só fisgava cachorro e gatos nas noites de Sipaúbas. O estranja escafedeu-se de Sipaúbas e a paz voltou ao reino dos animais.

Esse era um dos assuntos nas barracas da festa do padroeiro, que, aliás, rendeu como nunca para os cofres do vigário. Foi então que apareceu Mundico da Seriqueira com proposta pecuniária ao salvador de almas. Pagaria dez por cento de juros ao mês pelo dinheiro da quermesse. Ia botar um pé por fora na parede do açude que construía ano a ano cortando o Riacho dos Veados. O vigário achou a proposta animadora e passou o bolo de dinheiro do Santo à algibeira do fazendeiro. Passados dez meses de construção da parede e já dobrada a quantia emprestada, o santo pastor, no seu burrinho pedrez, deslocou-se à casa do fazendeiro, não em pregação evangélica, mas em missão de cobrança. Foi recebido com cosido de capão, prato de pirão com titela e aza boiando na terrina. Depois de bem refestelado, com direito a cafezinho sem açúcar no coroamento do acepipe, o santo pastor desfechou com muitos salamaleques a cobrança do dinheiro do Santo. Mundico, com simpatia de crente esperto, agradeceu a visita do padre e mandou recado para o Santo padroeiro, que saísse do altar e viesse no domingo seguinte fazer a cobrança. Afinal, Mundico da Seriqueira só paga suas dívidas a quem lhe empresta o dinheiro e não a recadeiro guloso.


FONTE: Jornal Diário do Nordeste - 08/05/12.


 

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