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As peles de Adriana Varejão

Batista de Lima

De peles somos repletos. Quanto mais abismos, de mais peles precisamos. É uma questão de segurança. Tudo o que construímos é uma busca de proteção. Nessa saga que empreendemos contra nossas incompletudes, há uma voracidade de decifração do sentido de estar no mundo. Daí que a classe dos artistas cisma esse mundo e o transfigura para encontrar a luz guia que existe por trás de cada coisa. Todos os signos da cultura trazem uma intencionalidade e uma incompletude que só olhos privilegiados chegam a devassar.

Adriana Varejão possui um olhar privilegiado. Vê as coisas além de seus contornos, capta dimensões desconhecidas dos signos, transfigurando-os. Ela consegue ver, rever, prever e transver. Afinal, não é fácil criar uma imensidão e instalá-la numa sauna, para que o olhar do espectador transporte sonhos e lembranças para muito além das instalações. Sua pintura é como se fosse uma partitura impressa na linguagem das peles. Seu atrevimento criativo consegue extirpar a pele do Cronos ao fazer emergir a infância das coisas. Por isso que seu viés ancestral se torna uma rédea a frear a corrosão que se instala no ser no momento em que é criado, e nas personas, quando Eros se rejubila da gestação.

Mesmo assim, a carnadura apresentada vem em forma de charque, trabalha para resistir. É preciso que ela resista como resiste a azulejaria. A ancestralidade instaura-se também nas entranhas do ser. A partir daí, os dois seres se ligam mitificando-se historicamente. O charque trouxe o azulejo. Sobre a ruína do corpo ergue-se a construção em azul. De novo vem a pele binária. Azul por ser azulejo, ou por ser o mar e o céu da metrópole? O presente não se liberta da ancestralidade. A metrópole avisa que não se esvaiu na sua totalidade. Libertação não é apenas política.

Adriana Varejão pergunta. Expõe o nervo mais sensível de quem busca entender suas intenções. Afinal, não há porto de chegada, só de partida. Cada espectador encarna a metáfora do dilúvio na busca de conduzir a arca ao porto do entendimento. É preciso nos encontrar na sua obra, pois lá estamos perguntando por nós. Seu tempo oscila do cronológico ao simbólico. Sua fala processada pode nos levar a uma fala primeira, autêntica, por estarmos impressos nos seus quadros. Nossa carnadura ali exposta é aquela que sempre se incrustou nos abismos que carregamos.

Quando não pergunta, a artista se protege. Seu viés barroco é um acúmulo de peles sobre peles. A indefinição dos seus abismos traz uma dúvida tão grande que a solução encontrada é se proteger com muitas peles. Sua superfície é uma metáfora. Todo o excesso é uma figuração de algo submerso que é o real. A leitura a ser feita das imagens barrocas de Adriana Varejão necessita de uma emersão que se alça das profundezas do ser para sua superfície. Seus motivos estão muito bem guardados, e só evoluindo deles para se chegar a um entendimento dos excessos da superfície.

Do fausto ao simples, Adriana transita no mesmo compasso. Suas temporalidades não privilegiam determinadas imagens, elas enfatizam a memória como forma de resistência à sanha temporal. Sua cosmovisão é produto de leituras de palavras e coisas. Seus contextos de onde se originam as intertextualidades não são apenas gráficos, são produtos também da leitura das coisas. Seu olhar também descobre o sol que se esconde em cada coisa. Olha o mundo subvertendo a ordem tradicional dos seres, para depois colocá-lo numa nova ordem. É nesse momento de formulação de uma nova leitura cósmica que imprime sua subjetividade.

Essa subjetividade em Adriana Varejão se torna mais latente quando pousa em estruturas arredondadas. O infinito impresso à nossa frente permite um mergulho no abismo. Precisamos de imensidões, e elas começam a fazer pantomimas à nossa frente. O sonho surreal não é apenas da artista, ele é continuado no nosso voo em busca do sem fundo. O olho do flâneur não tem limite, é concha e é ninho. Termina sendo um firmamento observando outro, um olho no outro, janela de almas. É aí onde está a culminância da arte de Adriana. Um colo, um abraço e um afeto transcendem dos seus arredondamentos.

Adriana Varejão está com sua exposição "Pele do Tempo" no Espaço Cultural Airton Queiroz, da Universidade de Fortaleza (Unifor), até o dia 29 de novembro. Essa artista carioca já expôs em grandes centros nacionais e internacionais. Sua arte promove uma verdadeira esfoladura do tempo, atacando-o por várias dimensões e segurando-o pela sua carnadura memorial. Sua arte dardeja nossa consciência e nos põe a refletir sobre o sentido da vida, diante do seu lado efêmero tão contundente. Não se sai incólume após uma visita à sua exposição. Até a ambientação do Espaço Cultural foi montada para sentirmos a estridência do silêncio, o que favorece a contemplação sem rasuras do concentrar-se. Imperdível, pois, essa exposição de Adriana Varejão, que através de sua arte nos põe diante de nós mesmos.


FONTE: Jornal Diário do Nordeste - 03.11.2015


 

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