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As memórias de Emerson Monteiro

Batista de Lima




José Emerson Monteiro Lacerda, 68 anos, advogado, bancário, jornalista, bacharel em Administração e acadêmico, verificou que algo estava se afastando de si: era a infância. Era preciso recuperá-la, já que nela estavam incrustadas suas mais belas lembranças. Assim, voltou no tempo e foi pescá-la nos terrenos ainda viridentes da sua memória. Daí que a vida no sítio lhe devolveu o cheiro do mel queimado de um engenho de rapaduras, as águas refrescantes de dois açudes e a valentia de uma trisavó que fez história no interior do Ceará.

Essa trisavó traz o nome de Fideralina Augusto Lima (1832-1919), matriarca da família Augusto, de Lavras da Mangabeira, município do sul do Ceará. Acontece que essa valente mulher morava na sede do município, mas com mais tempo no sítio Tatu, onde criou estrutura que lhe proporcionava vida própria, diante dos potenciais agrícolas ali existentes e explorados. Desse seu habitat, ela mandava na cidade e era respeitada pelos coronéis do Cariri, inclusive pelo Padre Cícero.

Entre seus descendentes, Fideralina deixou políticos, juristas, religiosos, agricultores e esse seu biógrafo. É evidente que esse livro de Emerson Monteiro não se trata diretamente de uma biografia, mas é a grande senhora, a principal personagem. "Histórias do Tatu" é um livro de crônicas que tratam de episódios acontecidos no sítio em que nasceu o autor. Esse sítio, o Tatu, foi onde passou quase toda a vida, a famosa Fideralina, desde o século dezenove até quando morreu, em 1919. É por isso que ao longo de 156 páginas, editadas em 2016, vão aparecendo situações familiares recheadas de uma atmosfera fantástica em que desfilam botijas, penitentes e visagens.

É sabido que D. Fideralina deixou uma botija. Segundo consta, e Emerson reconta com detalhes essa história, a velha senhora, juntamente com o vaqueiro Lourenço e a ex-escrava Tomásia, enterraram um tacho de cobre repleto de ouro e de prata. Era noite e os três seguiram até determinado local em que um buraco recebeu o tesouro que ficou enterrado. O vaqueiro conduziu a botija de olhos vendados, depois de ser rodado para não ter noção do destino aonde ia. Entretanto pergunta-se, e a Tomásia guardou esse mistério por toda a vida? Fato é que no Tatu, em noites escuras, visagens já foram vistas, vagando pelos terreiros e vigiando encruzilhadas.

Quanto aos penitentes, eles se apresentavam principalmente na Semana Santa. Era um grupo de homens encapuzados que saíam pelas casas, à noite, cantando benditos lamuriosos e pedindo esmolas. Geralmente o grupo era composto de doze participantes para simbolizar os doze apóstolos. Apenas um deles ia a descoberto das camuflagens. Era o líder do grupo e trazia o nome de "Decurião".

O curioso era que esses penitentes se autoflagelavam com disciplinas confeccionadas com navalhas cortantes. Por isso que ao serem aplicadas às costas desnudas cortavam as carnes e o sangue descia pelo corpo. O penitente, entretanto, só parava o sacrifício quando sentia que o sangue havia tocado o chão.

Emerson Monteiro nasceu em 1949, nesse ambiente de lendas e valentia. Afinal, mais de uma vez sua ancestral valentona conseguiu reunir mais de uma centena de jagunços para realizar suas vinditas. Numa delas, acontecida em 1900, um seu neto, médico jovem, clinicando em Princesa (PB), foi vítima de assassinato. De Lavras, então, deslocou-se um contingente de cem homens que foram vingar a morte do parente querido. Noutra oportunidade, em 1907, ela desalojou seu filho Honório do poder municipal de Lavras, também com mais de cem homens, para empossar seu outro filho, Gustavo, que comandou a cidade por mais de uma década.

Esse livro de Emerson, no entanto, trata de outros assuntos memoriais, como tipos humanos que compunham a cena senhorial do Tatu. Ele escreve sobre os cangaceiros, os ciganos, os caretas, os comboieiros, os escravos, os moradores do sítio e os pescadores. Também trata da natureza, citando os nomes dos pássaros da região, o arvoredo, o canavial e, também, das sabenças dos caboclos. Nesse passeio pela memória, surgem os animais domésticos, a culinária sertaneja e toda uma riqueza de produtos do próprio sítio que lhe davam uma autossuficiência.

Esse retorno do autor, ao sítio em que nasceu, transfigura-se ao reconstruir não só o local em que nasceu e morou por quatro anos, mas ao mergulhar no tempo e recuperar o local em que viveram seus ancestrais. Toda uma saga recheada de lutas e resistências vai sendo mostrada, enfatizando sempre o contraponto entre o sagrado e o profano, o campo e a cidade, a seca e o inverno, a fartura e a escassez, a violência e a paz. Ao trafegar entre esses polos, Emerson Monteiro não só revisita seu torrão natal como escava no tempo o DNA de sua ancestralidade, buscando, com o cordão umbilical, entrelaçar os viventes do Tatu, numa moldura em que todos se postam e renascem.


FONTE: Jornal Diário do Nordeste - 31/10/2017.


 

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