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As charqueadas

Batista de Lima


É difícil encontrar alguém de nossa região que não conheça carne de charque. Ainda hoje, ela é posta à venda em supermercados, mercantis, mercearias e bodegas. Vem já salgada, o que proporciona-lhe um bom período de conservação. Daí que as pessoas compram, preparam seus cozidos, comem, mas não sabem da sua origem, nem do processo de preparação pelo qual ela passou. Para isso, é importante a leitura de livros de folcloristas e antropólogos que pesquisaram sobre o assunto. Importante também é assistir ao vídeo de Roberto Bonfim, com um documentário intitulado "Charqueadas".

O vídeo, com 50 minutos de duração, é uma mistura de documentário com reportagem, com momentos de puro teor antropológico. Bonfim viajou por mais de trezentos quilômetros pela ribeira do Rio Jaguaribe, entrevistou vaqueiros e criadores de gado, pesquisadores e gente do povo. Foi colhendo material que mostra um Ceará do século XVIII em que comunicações e transportes precários entravavam o desenvolvimento da região. Mas diante de tudo isso havia a criatividade do cearense que nunca se deixou abater diante das adversidades.

Era preciso que o ciclo do couro fosse dando lugar ao ciclo do charque. O trabalho de campo que Bonfim empreendeu faz sempre uma ponte entre o passado e o presente, mostrando inclusive como vivem hoje as populações remanescentes da rota do charque. Por isso que se torna simbólico quando ele se ocupa em apresentar um fazendeiro nativo capturando um peixe de cativeiro em um tanque doméstico, para mostrar o quanto de diferença existe entre aquele ribeirinho dos tempos do charque e o que hoje ocupa o mesmo espaço. Esse contraste mostra a sanha do progresso erigido sobre os escombros de uma tradição.

Por falar em tradição, é bom assistir ao depoimento de Virgílio Maia, mostrando o significado das letras e símbolos com que os fazendeiros ferravam seus rebanhos. Essa prática, já fora de uso nos dias de hoje, permitia o convívio de reses de donos diferentes, pastando no mesmo espaço: roça, manga ou campo. Virgílio é estudioso e pesquisador sobre o assunto o que torna sua fala um dos mais belos momentos do filme. Também há entrevista com Juarez Leitão que pontua também a presença do charque na Zona Norte do Ceará.

Outro depoimento muito instigante fica por conta da fala do professor Francisco Pinheiro, atual secretário da Cultura do Estado, historiador de renome, que conhece bem a região retratada, por ter nascido lá, e que discorre com competência sobre a formação histórica das comunas do vale do Jaguaribe. Pelas areias daquele rio, o colonizador infiltrou-se no sertão, levando o gado, para um dia trazê-lo de volta em forma de charque. Tudo começa no ciclo do couro, época em que a carne era menos cotada que a pele, por ser difícil seu transporte até os centros exportadores.

A charqueada veio permitir a conservação da carne. Ao mesmo tempo, o seu transporte pela ribeira do Jaguaribe criou uma trilha em que transitava o gado com seus vaqueiros, ferradores, capadores e aboiadores. Essa trilha, do Icó ao Aracati, tem uma distância de 330 quilômetros, e foi percorrida por Roberto Bonfim, como se estivesse na época do charque. Daí dá para se notar pela paisagem, campos desertificados, estradas bem pavimentadas e a presença das motos substituindo os cavalos.

Além dessa constatação, há curiosidades históricas que vão surgindo ao longo do vídeo, como é a referência ao charqueador João Pinto Martins. Esse aracatiense vendo seu rebanho dizimado pela seca dos três sete (1777, 1778 e 1779) mudou-se em 1780 para Pelotas, no Rio Grande do Sul, e para lá levou a prática da charqueada. Enquanto aqui as charqueadas passaram a ser substituídas pela cultura do algodão, os gaúchos incrementaram a prática das charqueadas graças ao pioneirismo de um cearense.

Essa pesquisa documental de Roberto Bonfim chega ao seu ponto culminante quando no seu final apresenta uma verdadeira aula de como preparar o charque. É uma prática que mesmo perdendo seu tempo de glória, nunca deixou de existir entre nós. Por isso que, nesse momento do filme, um jovem nativo dá lições de como se preparar a carne de charque, ainda usando o mesmo ritual dos ancestrais pioneiros. Também há o momento em que uma dona da casa prepara uma refeição para toda a equipe, utilizando a carne de charque.

A equipe era composta, segundo os créditos mostrados, por Roberto Bonfim, encarregado da direção e do roteiro, de Dário Rocha como diretor de fotografia e Jacques Antunes, Eduardo Barros, Izaías Ribeiro e Herbson Fernandes. Contou também com vaqueiros, transportadores de animais e intelectuais pesquisadores. O patrocínio foi da Secretaria Estadual da Cultura que com seu incentivo nos permitiu possuir agora um documento importante sobre nossa cultura sertaneja, que com heroísmo e tenacidade de nossos ancestrais, fez chegar até os dias de hoje práticas que permitiram a permanência do homem no seu chão e o nosso desfrute hoje de um Ceará bem mais aconchegante.


jbatista@unifor.br

06/12/11.

 

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