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Arqueologia do Buraco

Batista de Lima

Desde 1960 os irmãos Manuel e Andrade têm mantido em funcionamento um bar rudimentar apelidado de "Buraco do Reitor". Um bar é apenas um bar, nada mais que um bar. No caso do Buraco, não é apenas um bar, nem apenas um buraco, é um poço de quase tudo. É o local de Fortaleza historicamente mais frequentado pelos estudantes universitários. É onde mais se tem bebido cachaça nesta loira desposada do sol. De tanto frequentado pela juventude universitária se tornou com o tempo um arquivo antropológico, rico de histórias de dores e de amores.

Esse bar fica no bairro Benfica, na rua Senador Catunda, quase esquina com a Av. Da Universidade, bem próximo ao Restaurante Universitário. Fica nas proximidades da Faculdade de Economia, da Faculdade de Direito, de residências universitárias e dos cursos de humanidades da UFC. Por isso que sua frequência tem sido de estudantes dessas faculdades e de outros locais de ensino superior, pois é local em que se aglomeram os usuários do Restaurante Universitário. Com o tempo, pois, a freguesia do bar foi criando um ambiente de convivência que se antecipava às refeições no REU. Ali todas as tendências políticas, todas as origens locais e sertanejas com suas histórias e suas opiniões foram se aglomerando em torno de grandes discussões.

Não se sabe a origem desse nome. É tanto que não há placa indicativa. Entra-se e fica-se em pé, por fora ou por dentro do balcão. E tome conversas que vão de política a futebol, de literatura a música, de filosofia a economia. Fernando Pessoa fuma e bebe em companhia dos universitários. Baudelaire discute acirradamente com Hemingway, Vinicius brinca com Cartola, Millor pinta as paredes com Jaguar, Faulkner tenta falar de política com Bukowski, Jobim e Lupicínio falam sobre Dolores Duran. Tudo isso acompanhado por Belém, Pateta, Jabão, Dr. Nilton, Messias, Marcelo, Rômulo e Ricardo Vidal, que anota tudo.

Ricardo Vidal tornou-se o cronista do Buraco. Escreveu "Marcas pelo chão da memória e o Buraco do Reitor e suas histórias". É um título tão desmantelado quanto a capa, quanto o livro e quanto o Buraco. A capa, de João Ricardo, é um painel em que aparecem algumas fotos dos frequentadores do bar e cartazes de personagens das conversas que surgem por lá. Há uma misturada de B.B. King com Noel Rosa, Bob Marley com Bukowski, Batman com Rolling Stones, Blade Runner com Amadeus; e por aí vai esse apanhado surreal, pois essa parafernália também se estende pelo livro.

O livro é um retrato do "Buraco". Publicado pela RDS Editora, neste 2015, traz 240 páginas de poemas, contos, crônicas, memórias e até artigos conceituais sobre música popular. Essa mistura toda poderia até provocar uma má digestão lectural, mas como são coisas do "Buraco", é preciso conhecê-lo ou por lá estar para entrar no clima da proposta do Ricardo. Por lá estive nos tempos que fazia Letras, anos 1970. Não fui mais. Acontece que muitos frequentadores, até anteriores a essa época, continuam a frequentá-lo.

Naqueles tempos e depois, também frequentávamos outros bares não tão famosos: Quina Azul, Balão Vermelho, Estoril, Anízio, Armário, Chaguinha, Prequelândia, Zé Augusto, Alicate, Barnhambi, Flórida Bar e Cirandinha. Foi, entretanto, o Buraco que manteve até hoje sua fiel clientela. São pessoas que retornam com seus cabelos brancos, montados em suas histórias de sucesso. Alguns foram levados pela cirrose, outros por males do coração. Os resistentes estão sempre voltando, e Ricardo Vidal é um deles. Sua volta triunfal, entretanto, é esse livro de memórias em que todos comparecem com suas histórias e seus pseudônimos para não se comprometerem em casa.

As histórias vão surgindo no livro de uma forma que até parecem fantasiosas dado o seu teor aventuresco. Os poemas são bons, os leitores, no entanto, vão preferir os textos em prosa, pois neles está o retorno àquele espaço de tantos goles e tantos papos. Por isso que o autor dedica a cada frequentador assíduo um perfil em que afloram episódios até jocosos de boêmios que perderam o caminho de casa, mas não perderam o caminho do Buraco. Há histórias de comemorações de aniversários, não das pessoas, mas do bar.

Quando se chega à culminância dessas histórias de boemia, Ricardo passa a transcrever seus contos. É nesse momento que se tem certeza de estarmos lendo ficção, e talvez nem seja.

O conto "O gato" está delicioso. Entretanto é história ouvida no balcão do bar, experiência adolescente de um frequentador que não tem coragem de se revelar ao público. "Folhas de Outono" é uma narrativa antológica que pode figurar em qualquer crestomatia sobre literatura cearense. O mesmo acontece com "Relaxe meu bem, relaxe". São narrativas carregadas de erotismo temperado com um fino humor. São coisas de bar, coisas de quem está jogando conversa fora sem preocupação com o tempo nem com os ouvintes. São causos que Ricardo Vidal foi escavar na memória de meio século de frequentador do Buraco do Reitor e de muito mais tempo de verdades e mentiras por ali contadas. Dessa forma tem-se uma agradável leitura de mais de seis décadas de histórias de fiéis frequentadores de um bar em que é permitido confessar tudo entre amigos, traçando, assim, o perfil de uma geração que se narra entre libações intermináveis.


FONTE: Jornal Diário do Nordeste - 14/07/15.


 

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