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Aqueles tempos furiosos

Batista de Lima


Fermentação é o termo melhor para definir aquele momento de resposta a algumas paranoias suspensas sobre nossas cabeças. A ameaça nuclear, como resultante da Guerra Fria, era causadora de insônias. A caduquice das vanguardas, a culminância do fordismo e a guerra do Vietnã trevavam o início da década de 1960. Era preciso reagir ao conformismo, ao mofo, à pasmaceira imposta. Era preciso uivar. Foi nesse clima "noir" que surgiu o poema explosão da juventude da época. Era "Uivo", de Ginsberg, poeta americano, judeu, homossexual, rebelde em permanente lombra.

Aqueles tempos presenciaram a poesia servindo de sustentação a uma difícil sobrevivência. O eu estilhaçado precisava encontrar uma forma de se recompor. Era preciso indignar-se, vestir-se de fúria, contestar. Os acordes do rock viraram trilha sonora dessa marcha sem destino. Muitos sucumbiram nessa saga, principalmente o trio da frente, vítimas da maldição dos 27 anos, Janis Joplin, Jimi Hendrix e Jim Morrison. Diante dessa catástrofe iminente nada mais válido do que ressuscitar Rimbaud, Lorca e Maiakovski.

Esse contexto, no entanto, derivava da fúria para o dionisíaco. A flor enfrentava fuzis e o discurso amoroso do jovem era uma pregação da revolução sexual. O hedonismo hippie entrava em choque com a tradição, a família e a propriedade. A gente sabia que alguma coisa estava acontecendo. Não tínhamos tanta certeza do que era, mas estava acontecendo. Até sendo de esquerda, politicamente, você podia fazer a festa. Os grandes festivais de rock (Woodstock, Altamont, Ilha de Wight, Hyde Park e Monterey) foram panegíricos de um sonho que não tinha como mais se segurar.

Os estilhaços dessa explosão de despedida tinha que chegar ao Brasil e coincidia com o surgimento de um momento político de exceção. E "Pra não dizer que não falei de flores", nas palavras de Geraldo Vandré, era o hino de uma juventude "pelas ruas marchando em indecisos cordões", fazendo "da flor seu mais forte refrão", acreditando "nas flores vencendo canhões".

Tempos duros em que tanques atropelavam sonhos ao som de festivais da canção, onde Caetano e Chico, com seus amigos, tentavam alentar as nossas incertezas. Ganhar a Copa de 1970 foi um curativo sobre uma ferida braba. Araguaia foi o sítio escolhido para o último suspiro da esperança de uma juventude politizada.

Nunca uma geração teve tantos ídolos. É por isso que hoje quem viveu aqueles momentos e até quem nasceu depois tem saudades daquela celebração. É surpreendente jovens de hoje confessarem ter inveja daquela geração. Os festivais da canção, as passeatas, o teatro do oprimido, a literatura alternativa, o "underground", toda uma miscelânia de manifestações culturais se realizava num Brasil que queria se narrar.

O Pasquim era disputado nas bancas de jornais com avidez. O teatro engajado tinha seus grupos idolatrados: Arena, Opinião e Oficina. A Estética da Recepção vinha dar voz definitiva ao leitor, glorificando seu horizonte de expectativa. O leitor passou a ser valorizado como reescritor do que lia.

Naquele tempo era interessante ler Marcuse, ou, no mínimo postar debaixo do braço um exemplar de "Eros e Civilização", com a capa e o título bem visíveis. Usar uma calça Lee, comprada de forma clandestina, era o máximo, mesmo se sabendo de sua origem imperialista. Mais importante, no entanto, era usá-la desbotada até não poder mais. Era preciso ler Luís Carlos Maciel interpretando Wilhelm Reich e dando uma de filósofo nas páginas do Pasquim. Não precisava entender, importante era dar a impressão de que se entendia tudo.

Aqueles tempos furiosos viram tombar ícones da política americana, os irmãos Kennedy, Luther King e Malcolm X. Os Beatles se separaram. O grande império perdeu a guerra para o Vietnã. A Rússia viria depois a esfacelar-se. O muro de Berlim veio a cair. Alguma coisa estava acontecendo, tanto lá fora como aqui. Afinal, fizemos nossas passeatas, engolíamos o que vinha de fora em fotos coloridas e se jogávamos no carneiro como dizia Augusto Pontes, era para ir para o Rio de Janeiro. Aqui só servia o que os caraveles da Cruzeiro traziam em vídeo-tapes.

Aquele momento nos levou a contestar tudo que fosse possível. Éramos alunos do Liceu, o maior centro secundarista de contestação. Os professores estavam curtindo seis meses de atraso nos seus salários. Lá cursei o científico noturno de 1968 a 1970. Foi momento duríssimo. Saíamos em passeata pela Liberato Barroso até a Praça José de Alencar, parando em quase todos os quarteirões, quando Genuíno e Gilberto Sidney Telmo subiam nos postes e gritavam discursos inflamados e palavras de ordem. Havia mais passeatas do que aulas.

O cine Diogo apresentava aos sábados pela manhã o seu famoso cinema de arte. Tinha um público cativo de universitários e intelectuais já feitos que ficavam bastante tempo antes do filme naquele hall amplo que o cinema possuía. Naqueles momentos discutia-se cinema e política.

Todo mundo versado em Marx e Engels. Todo mundo discutindo Pasolini, Bergman, Glauber, Antonioni, Fellini, Buñuel, Rossellini, Godard, Lelouch e Visconti. Era uma geração versada em qualquer tema, ainda se agarrando ao sonho de um mundo melhor. Era uma geração que uivava e cujo grito permanece suspenso no ar.


jbatista@unifor.br

14/12/10.

 

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