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Aqueles dias líquidos

Batista de Lima


O combustível da máquina do mundo é o desejo. Possui ele uma gula insaciável. Ai daquele que matar o desejo. Mas foi por conta do desejo que o casal primogênito foi expurgado das delícias do paraíso, frágeis delícias que não resistiram ao império do desejo. Sem ele tudo é monotonia. Com ele tudo pode se transformar em alegria, em saga. A própria natureza pode ser uma fonte de desejos. O mar, por exemplo, pode despertar desejos recônditos, sinestesias inesperadas, cores novas para a vida, dias líquidos.

É por isso que esse novo livro de Joyce Cavalcante veio a se chamar de “Longos trechos de dias líquidos”. Logo na ficha catalográfica a editora Scortecci classifica o livro como sendo de contos. É como se quisesse partir o mar em pedaços. O livro é muito mais um romance em que sempre um casal é atiçado eroticamente por um terceiro personagem que é o mar. É como se o paraíso instalado presenciasse o casal sendo instigado à volúpia pelo mar-serpente. Nesse panorama instalado, o mar convence a turista e o nativo a seguirem o desejo que os envolve.

Essa atmosfera paradisíaca é propícia para que o componente erótico da narrativa seja construído a partir de situações movidas pelo desejo de duas criaturas que se cruzam para celebrar rituais idílicos. É aí que Joyce vai se dividindo entre personagem e narradora, entre as sugestões do mar e os reclamos do corpo, entre a entrega e a recusa. O livro se torna um permanente jogo onde o erótico é ensaiado com tanto ritual que a encenação já não fica tão necessária. É como se o treino fosse muito mais importante que a disputa, como se a preliminar fosse mais emocionante que a partida principal. Para isso fica imprescindível a presença líquida dos elementos. O mar, o sal, a espuma, tudo se combina na aquarela de onde Eros frui.

Essa fruição também se instala no sintagma, quando os termos são urdidos para que na sua estrutura profunda venha a se instalar a metáfora. Daí que o trovão ocorre quando “São Pedro arrasta móveis no céu”, e “o coração se arcoiriza quando se encanta”. Depois há expressões metafóricas que embelezam a linguagem como: “ternura cremosa”, “oloroso pescoço”, “desejo demais pra poucas vísceras”, “sentada na cor da areia” e “noite cúmplice”.

Outro recurso utilizado pela autora é pintar com cores as mais estranhas, seus cenários praianos, de forma que verdadeiras aquarelas vão brotando do texto. Suas imagens são impressionistas, e inusitadas combinações dão origem a estranhas colorações. São: azul-aquático, verde-celeste, acontecimento cor-de-goiaba-braba-e-forte, azul-da-china-inesperado, olhos cor-de-uísque, olhos cor-de-gasolina, colo azul-turquesa, arrebentação roxo-clara, roxo-cor-de-procissão, amarelo cor-de-provocação, flor cor-de-vinagre, tonalidade abóbora-arroxeada, emoção cor-de-olheiras, odor cor-de-musgo, nuance cáqui-maravilha, alucinação cor-de-pistache e investimento cor-de-folha-seca. Essas imagens criam umas sinestesias que atiçam nossos sentidos.

Esses recursos todos direcionam o leitor para a constatação de que a autora pinta um cenário paradisíaco, onde a sensualidade da personagem consegue sua expansão. Mesmo que o acontecer seja noturno, são noites de coração desgovernado. São momentos idílicos onde maresia, espuma e brisa interferem entre os corpos que se complementam.

Não há como se evitarem umidades. As umidades se contrapõem ao clima quente e proporcionam o surgimento de situações eróticas. E elas vão aparecendo a partir do momento em que a turista sozinha entre os nativos, se entrega à aventura, procurando entre habitantes da ilha, sua realização amorosa. A mulher deseja o nativo e se lança na sua conquista.

O erotismo começa a se delinear na narrativa já a partir do próprio título dos textos. “O homem que tinha um peixe entre as pernas”, “Dois homens e uma mulher numa ilha” e “Rio de assédio” são títulos que já sugerem o clima de erotismo instalado no que vai se ler logo após.

Joyce Cavalcante escreve bem porque tem coragem de dizer o que pensa e fazer o que quer. Há, no entanto, nesse seu livro, uma narrativa de extrema sensibilidade. É a história “Neguinha”. Quanta ternura e quanta frustração no desenrolar da saga dessa pequena criatura. Essa narrativa é o ponto culminante do livro, pois a figura picaresca de Neguinha começa tão insignificante que só aparece com o nome “Neguinha”. Por outro lado ela dá a volta por cima e consegue conquistar o pai adotivo. Há por isso, no texto, certa semelhança com “Essa Negra Fulô”, de Jorge de Lima. Essa intertextualidade enriquece a narrativa de Joyce.

Por fim, chega-se à conclusão da leitura do livro com o desejo de que outras páginas viessem continuando as histórias dessa ávida mulher. O livro de Joyce é curioso, criativo e sensual. Ele prende o leitor até o final e comprova que alcançou um patamar ainda mais alto na sua trajetória de escritora ligada às causas e às coisas femininas.


jbatista@unifor.br

21/12/10.

 

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