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Aquelas Semanas Santas

Batista de Lima

Era uma semana de acontecimentos que se repetiam ano a ano. A tradição religiosa era seguida com rigor. Havia um tempo em que os santos eram cobertos com panos roxos. Eram quadros na parede, geralmente com um Coração de Jesus e uma Nossa Senhora. Naqueles dias evitavam-se a pesca e a caça. Alguns homens não faziam a barba e nem tomavam banho na sexta-feira. Certas conversas eram evitadas, como também discussões. Havia até quem evitava falar alto. Gritos, nem pensar. Tudo ia criando uma atmosfera um tanto medieval que tinha sua culminância na sexta-feira.

O jejum era obrigatório até para nós meninos, privados das estripolias diárias. Caçar passarinho de baladeira, tomar banho de açude, dando cangapé, e deixar de rezar o terço à noite não podia. Havia, entretanto, certas vantagens vivenciadas. Uma delas era a ceia. A gente se esbaldava de comer malassada de bacalhau. Não se sabe até hoje como naqueles cafundós a que nem carro ia, à época, chegava religiosamente, ano a ano, o bacalhau da Semana Santa. Meu avô mantinha essa tradição, como também o aparecimento do primeiro feijão verde apanhado no lastro da bagaceira do engenho.

Todo ano, quarenta dias antes da Semana Santa, ele plantava o feijão ligeiro, que nós chamávamos feijão quarenta dias, em um quadrado de trinta metros no local mais fértil da bagaceira do engenho. Na Sexta-feira Santa o primeiro feijão estava maduro, os primeiros maxixes, que nasciam sozinhos, estavam prontos para consumo. Ah! Era imperdível o primeiro jerimum caboclo que também vinha trazido do lastro. Era também a época em que as vacas davam mais leite pois era quando o pasto era maior. Aí nós meninos tínhamos que pastorear as vacas leiteiras em determinados pastos não cercados.

Não havia ainda a canjica e a pamonha, isso só um mês depois porque o milho crescia com preguiça. O importante era também o queijo raro, comprado na feira da vila que vinha complementar o acepipe. Para isso, o bacalhau bem desfiado, depois de passado na água quente, para tirar o sal e amolecer, era acrescido de ovos, farinha, coentro e cebola. Depois disso tudo misturado e bem mexido era colocado numa grande frigideira no fogão a lenha e se formava a malassada, que era um omelete grande. Dependendo dos comensais eram feitos tigelões da malassada cortada em pedaços.

O cheiro invadia a casa dos avós para onde íamos todos para tão desejado ágape. As terrinas vinham à mesa com o feijão verde cozido com o maxixe, o jerimum, o queijo e o leite, tudo junto, isso acrescido do bacalhau. Era um banquete esperado o ano inteiro. Mas só era comido já tarde, pois era preciso obedecer ao jejum. Íamos pois de fome aguçada. Mal conversávamos sobre os penitentes que vieram nas noites anteriores cantar nas calçadas e pedir esmolas. Cada dono de casa dizia o que tinha presenteado aos beatos.

Esses penitentes só apareciam na Semana Santa e, tarde da noite, todos encapuzados, menos o decurião que era chefe do grupo e ia à paisana. Eram doze homens cobertos, cantando benditos lamurientos que era para representar os doze apóstolos de Cristo. Alguns se cortavam com disciplinas que tilintavam na noite. Pela manhã, às vezes, encontrávamos pingos de sangue na calçada do meu avô. Era um dos rituais daquelas Semanas Santas que se diluíram no tempo e que hoje não se repetem. Afinal, não cultivamos, como devíamos, as nossas tradições.


FONTE: Jornal Diário do Nordeste - 16/04/19.


 

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