top of page
  • Foto do escritorBatista de Lima

Aquela mãe

Batista de Lima


Dia das mães fui visitá-la na prisão e a encontrei completamente feliz. Três dias antes havia agredido um policial, em um supermercado, e fora presa. Estivera fazendo compras com os três filhos menores e o caçula pediu para ela comprar o chocolate. Ela negou-se. O garoto na distração da mãe colocou o doce no bolso e saiu sem pagar. O guarda dando-lhe um safanão tomou a barrinha de volta e foi áspero com a criança. Foi o bastante para a mãe se descontrolar e xingar o segurança por agressão a sua cria. O guarda reagiu ríspido e os dois se atracaram. Ela alcançou uma garrafa próxima e deixou o grandalhão desacordado.

A viatura que passava em frente, vendo o sururu, prendeu a agressora, levando-a algemada ao delegado que também foi destratado pela mãe violenta. Presa, o marido foi buscar as crianças e levar-lhe roupas. Agora, há três dias em companhia de duas prisioneiras assassinas, estava feliz. As três com curso superior. Uma agredira a polícia, as outras duas haviam matado os companheiros. Fizeram logo amizade e amarraram suas histórias. Ela no primeiro dia recebera as amigas do trabalho que lhe trouxeram livros e brigadeiros. No segundo dia levaram-lhe mais livros, bolo e revistas femininas. No terceiro, dia das mães, levei-lhe chocolates e ela estava esfuziante.

Há três dias, não lavava nem passava roupas de crianças e do marido. Não sabia o que era sujeira de pia nem limpara traseiro de criança. Não ouvira o ronco do marido durante a noite, nem pesadelo do filho mais velho. Não atendera telefone da mãe reumática, nem conselhos da sogra para a glicose alta do marido. Há três dias ouvia as mais belas histórias amorosas das companheiras de cela. Já lera dois livros eróticos da Hilda Hilst e a metade de “Lolita”, do Nabokov. Quando lhe trouxeram “Tereza Batista cansada de guerra”, do Jorge Amado, achou grosso mas encarou destemerosa.

O delegado da noite, rapaz forte de muitos músculos, já lhe dedicara algumas mesuras. As colegas de cela já lhe haviam ensinado fórmulas de apascentar marido truculento. O marido não compareceu, por estar com as crianças, mas mandara bilhete amoroso. Um antigo namorado, dos tempos da faculdade, trouxe álbum de quando os dois se aconchegavam e deu-lhe um abraço demorado na hora das despedidas. Suas mãos estavam mais finas, sem sinal de gordura e o esmalte que as colegas colocaram em suas unhas continuava intacto. O penteado que elas também lhe fizeram, deu-lhe um ar de tigresa.

No quinto dia o delegado veio soltá-la e ela pediu um dia a mais de cela para ensinar inglês às colegas. Por uma semana essas aulas continuaram já extensivas a outras prisioneiras. Muitas histórias já lhe foram contadas e ela já pensa em escrever um livro. Quem não gostou de sua permanência presa foi o marido que não tem dormido, tem faltado ao trabalho e tem deixado a casa virada por obra e graça das partidas de futebol que tem jogado com os três garotos por entre os móveis. O cachorro escondeu-se debaixo da cama para não morrer de boladas.

Soube ontem que ela fora expulsa da cadeia e teve que voltar para casa. Encontrou a devastação instalada nos seus antigos domínios. O filho mais velho estava constipado, o mais novo com queimadura no pé, o do meio com um dedo ferido a faca. O marido jazia embriagado, caído entre dezenas de latas de cerveja, com hematomas nas costas. Um sofá estava furado. O canário belga tinha sido comido pelo gato, e o cachorro negava-se a sair debaixo da cama. Hoje estou visitando-a. A casa mais ou menos arrumada, minha amiga desgrenhada está completamente infeliz. Foi muito difícil convencê-la a não ir bater no guarda para voltar feliz à prisão.


FONTE: Jornal Diário do Nordeste - 21/05/19.


 

10 visualizações0 comentário

Posts recentes

Ver tudo

Comments


bottom of page