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Anatomia poética de Leontino

Batista de Lima


Na beira do abismo em que se debruça, Leontino Filho borda os contornos do perverso tempo. Corroído por tantas luas desperdiçadas, ele tenta apagar um vesúvio que transporta. Tricoteia com pena e verbo as beiradas da hora, para estancar a correnteza do dia. Poema é balsa e bálsamo com que ele se lança no estuário do talento que conduz. Mar e rio, rio e mar, a maré é quem determina o ritmo do berro incrustado na espuma da dor. A poesia que salva é a mesma que condena.

Poeta do mar, da memória e da infância, mesmo recuando, tudo sangra. Tudo está inscrito nas águas trêmulas do purgatório que é viver, sentir e cismar. Poeta de verdades túrgidas, em palavras hígidas, Leontino paira no limbo das vigílias sobre os escombros do código que despedaça antes da reconstrução. Sua “Anatomia do Ócio”, ARC Edições, 2018, mostra as entranhas das procuras. Sua ontologia ao avesso põe em deriva o valor oficializado das essências. O que persiste é o percurso, pois tudo vale pelo que migra de si.

Nessa migração não cabe negócio, essa negação do ócio. O poeta precisa do ócio produtivo para, na anatomia de sua carnadura, alicerçar a transfiguração. R. Leontino Filho, nessa sua anatomia, revira as vísceras do discurso com mãos que refinam sinas. Revela uma poesia de muito sal e muita água, instaurando o mar na página branca que o desafia. Esse mar o viu nascer no Aracati e na disputa entre as águas chegantes do Jaguaribe e a força da onda da maré cheia, o mar o tragou, despejando-o no Rio Grande do Norte e depois em São Paulo em que doutorou-se. Hoje educa o Mossoró e adjacências nas artes da boa leitura.

Para esse poeta, “qualquer exílio é treva”. Segundo ele deixa transparecer, o mar oceano é uma paisagem propícia para esse exílio. Afinal, sua paisagem única é um deserto sem oásis, terror dos rios caudalosos, engolidor da espada líquida que fluvia sob seu feitiço, que se revela na pele trêmula das águas. Assim, no seu discurso ao deserto, a perdição da palavra gera reflexões sobre os tropeços. Daí que a poeira imaginada descreve a infância do pó, e o sorriso da dor vem dos murmúrios das peguntas.

Leontino Filho vai da memória do abismo aos píncaros do sintagma, empunhando uma fala das coisas em “porosas alvoradas”. É um poeta curador das feridas da alma numa lírica salvadora da barbárie do existir. Por isso que pó ante pó brota a infância no estrume da memória vestida de um luto desperdiçado diante da boca escura da treva. Suas metáforas vão do “ventre das águas” à “agonia da solidão”, passando pelo “resgate encardido em lascas de transtorno”. Podem ainda aparecer na “asa comprida das coisas”, na “balada infecunda do vazio” e até na “cauda dos sonhos”.

Por fim, pode-se dizer que ao atravessar essa correnteza poética de R. Leontino Filho, há dois momentos em que o leitor precisa de precaução. São dois cômoros poéticos, antológicos monturos de metáforas. Primeiro “Âncora leve”, página 109, primoroso poema de quem sabe empunhar palavras em tescituras. Depois, “De (não) poder ser palavra”, página 128, longo poema de um fôlego só, verdadeiro mergulho nos potenciais da palavra. Esses dois poemas podem figurar em antologia que apresente os melhores poemas brasileiros contemporâneos.


FONTE: Diário do Nordeste - 20/11/2018.


 

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