top of page
  • Foto do escritorBatista de Lima

Anacleto e Odilon

Batista de Lima



No último retorno aos meus torrões, encontrei mais domingos que dias de roça. As horas úteis haviam ficado inúteis. O abandono cumprimentou minha chegada com afetuosos abraços. As notícias, no entanto, estavam mais frescas que na Capital. O mundo todo estava ali, acocado no vídeo do televisor colorido, ligado até na vigésima quinta hora. Algumas casas fechadas se entupiam de outroras, com o mato entrando pelo nariz das portas. No meio dessa despaisagem, topei com Anacleto, todo repleto de carrapicho na fala. Ia à vila fazer tossura das madeixas, montado no subitamento de muitas cilindradas, cheirando a combustível queimado.

Anacleto Macário adentrou os reinos depilatórios de Odilon Nicanor cavalgando uma secular intimidade dominical de desbarbeamento ou simplesmente para fazer o pé, tirar as ondas e aparar as pontas. Acontece que naquele dia do Senhor, o barbeiro sestroso, há horas, alisava as penugens de Lica Tocadeira, como quem não queria mais freguês, ocupando sua cadeira giratória. Não era possível que em pleno princípio das festas do Santo, o único esteticista capilar da redondeza gastasse horas remanchando no alisamento da maçaroca da sanfoneira.

Isso tudo em janeiro, um mês desassossegado, em que tudo girava em torno do padroeiro São Sebastião, e o pau da bandeira já ereto verdejando sonhos, enfiado que fora no patamar da igreja.

Odilon tirava do domingo, retalhos de quarta-feira, quando costumava ir receber aulas de sanfonamento lá pelos pastos de Lica. Mas nesse domingo havia nuvens enrugando o céu com algumas verrugas de nevoeiro escuro. Poderia vir chuva antes dos galos enfeitarem a noite com cantos premonitórios. Naquele momento o barbeiro soube da boca de Lica que Anacleto, ali chegando, andava farejando seu alpendre em busca de renovação de aconchegos antigos. Soube também, o fazedor de barba, que seu adversário, que assuntava na calçada, andava procurando madeira nobre fazedoura de caixão de morto. Era muita notícia íngreme para um domingo que apenas se desfraldava.

O boato que correra pelos botecos da vila é que Anacleto, depois que alcançou os sessenta invernos, amoleceu de mesmo. Mas o pior fora o desprezo eterno que lhe impusera a tocadeira, depois que a conta na mercearia de João Raimundo deixou de ser paga pelo homem amolecido. Dizem, inclusive, que Anacleto estava atacado de banzo e falador de morte. Não se sabia se de sua própria ou da sanfonista interesseira, ou ainda de quem baixasse a asa para ela. Fato é que naquele panorama, Odilon cabeleireiro estava correndo risco e sua freguesa musicista muito mais ainda.

Anacleto não era homem de conversas, quando ansionoso se tornava. E naquela manhã trazia um cuspidor de fogo atrelado ao cinto de couro de raposa. Odilon também não era de bater a passarinha com qualquer trovoada de provocador. Assim sendo, estavam os dois prestes a amarrarem os bigodes para salvação de um só. No ínterim desse clima, padre Climério, com olho maior que o astro rei, já vinha com a bolsa das almas em petição de óbolos para preservação do Santo já em festa novenada. Encontrando Anacleto na calçada, já babando o cano longo, foi logo benzendo a arma e prenunciando ao representante dos Macários que a arma ia bater catolé.

Padre Climério, com dois metros de cicatrizes, era famoso por amansar burro, derrubar boi e fazer parto. Como não havia delegacia no povoado, a pequena sacristia da capela era a cela para presos, cuja grade mais fornida era um risco feito no chão. Durante a festa do Padroeiro, os presos tinham que assistir às celebrações religiosas, devidamente ajoelhados na porta da prisão improvisada e à tarde recebiam aulas de catecismo da irmã mais velha do sacerdote, que ministrava religião de palmatória na mão. No final da festa, durante a procissão, os presos tinham que levar o andor do Santo e cantar os benditos treinados.

Enquanto o Padre Clilmério examinava o clima na barbearia e arredores, a população em frente se aglomerava já fazendo apostas. Uns diziam que o padre delegado prenderia os três, outros que apenas os homens seriam retidos. Um vendedor de animais apostou um cavalo baio contra uma bicicleta sem garupa. Um vendedor de mangas apostou um isqueiro sete lapadas contra sete caixas de fósforos Fiat Lux. Um estudante fanhoso da escolinha de Dona Margarida Maria empenhou um caderno Avante contra três lápis de cor de uma colega serelepe.

Outras apostas, ceduladas de pouca monta, iam sendo feitas até desembocar no bozó de Bié e nos balcões das bodegas.

Com esse clima cheirando a pólvora, mesmo sem tiro, houve tempo para Lica janelar dois metros de parede e se internar para sempre no mofumbal detrás. Nunca mais deu notícias de seu paradeiro. Quando o reverendo enganchou a batina no cinturão da calça e o taurus de cabo madreperolado copiou o sol, os dois inimigos baixaram a crista. Ali não era rinha de galo de briga. O reverendo, dando um salto por cima da ligeireza, já continha na mão direita a orelha de Anacleto Macário. Assim munido, ingressou no salão de Odilon que de navalha na mão e intencionando puxar a arma do cós, viu Padre Climério, de um chute só, quebrar tamborete e mesa e a cadeira de balançar. Assim, o barbeiro ofereceu logo sua orelha, evitando maior desastre.

Os dois brigões desvalentados passaram a ser arrastados diante da multidão apupante em busca da capela, com sua prisão marcada no chão a giz. Antes porém, diante do altar do Santo, tiveram que se oracionar e cantar o bendito da novena, puxado pelo padre. A multidão ali contrita, também benditando o Santo, aplaudiu Padre Climério na solução do problema. Lá fora no patamar, as apostas se desfaziam no pagamento dos perdedores. A barbearia passou a festa fechada, Lica nunca mais deu notícia, e os dois brigões, sob as ordens do vigário, foram estudar catecismo. Assim, os dois não se enfrentaram na prisão, afinal Padre Climério, do alto da sua justiça, conclamou os valentões, agora ali juntinhos, para que brigassem muito, briga de morte, a fim de que o que ficasse vivo, enfrentasse também, em idêntica briga, o Padre Climério Braúna de Carvalho.


FONTE: Jornal Diário do Nordeste - 25/07/2017.


 

3 visualizações0 comentário

Posts recentes

Ver tudo

Comentarios


bottom of page