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  • Foto do escritorBatista de Lima

Alguma coisa de quase nada

Batista de Lima


De cima desta ladeira, eu observo a planície e uma grande saudade do mundo se estampa. Vestígios de antigos rios entrelaçados vertem salmoura de um tempo apunhalado. Um pouco mais à frente, restos de uma velha avenida sangram indícios de máquinas e vermelhos lumes. Neon? Daqui de cima dá para se ouvir uma antiga música inscrita no ar e alguns clarins. Blues? Esta é a última ladeira. O resto é pântano. Esta é a última elevação do balseiro de palavras acumuladas. Enquanto tudo parece veloz, são meus olhos que estão lentos? Ainda bem que um fantasma libertado tenta me falar de amor.

Esse fantasma vem me dizer que amanhã vão leiloar palavras enriquecidas com farelos de ternura. Depois me aconselha a não olhar para trás porque o outro lado da ladeira é um grande nada interrogador e virarei estátua de areia se olhar ousar. Por isso que enquanto aqui estiver, darei as costas para esse imã que nos atrai e que um dia nos engolirá. Também me diz que não dá para ser feliz olhando. Portanto fecharei meus olhos para ver o outro lado de tudo, que só de frente tenho tentado ver.

De cima desta vertigem, estarei rindo dos abismos. Daqui de cima vejo o desfile das horas desperdiçadas, bordado em alguns panos velhos que desperdicei pelas estradas. Daqui dá para ver Vinícius e Baudelaire fumando e dançando de mãos dadas e mandando que eu me queime para iluminar as trevas. E meu avô se desfaz, fazendo cercas sobre os escombros das profecias. E Neruda, olhando o que sobrou do mar, suspira, achando que reencontrou sua Isla Negra. Depois me diz que ainda há muitas coisas para se ouvirem e muito mais para olharmos. Também me diz que alguma coisa posso tirar de um quase nada. Se impostos me são impostos é consequência da ousadia de querer ser, quando apenas estou.

De cima deste elevado, tento me ver passando pela planície. Tento escavar as horas para ver se o tempo existe. Tento escavar a memória para ver se encontro uma cidade que um dia foi minha demência e hoje é museu dos insensatos. Daqui diviso uma escadaria que não sei se sobe, que não sei se desce. E minha preguiça não permite que daqui me saia. Mesmo assim dá para vislumbrar muitos Jimmy, muitos xotes e vinte e sete pastores, um para cada ano de nossas vidas. Diviso um curral repleto de palavras sucateadas que foram tiradas de frases seculares.

Daqui dá para ver o que restou da velha casa. Alguns retratos ainda boiam na parede que teimou em ficar em pé. E a cidade que existiu fala através da casa e a casa fala pelo porão que não tem fim. E o porão me conduz a minha mãe numa nova gravidez de mim. Há palavras escritas e inscritas em transbordos suspensos no ar. Há verbos conjugados e muitos nomes de quem partiu, pensando que se ia, mas não se foi. Nesse interlúdio há um transitar de coisas que um dia transitaram mas por aqui também ficaram. São coisas de outros longes, são longes de outras coisas. São.

Daqui não mais diviso a mata pois por aqui se mata a mata. E por essa planície um dia passaram rios e agora nada mais fluvia, nada mais nada. Por aqui passaram pássaros que cantavam melodias premonitórias. Hoje espero por algum que escapado esteja desse dilúvio que por aqui passou. Que seja um pardal ou uma andorinha a me presentear com uma folha de planta, com uma alga ou com um simples voar.

Essa paisagem decapitada me mostra escombros do velho teatro como se em pé ainda esteja, aguardando os atores. A velha casa mantém um espetáculo gritando na memória. Um monturo de realidades dali se ergue, brotado da fantasia que um dia conteve. O velho teatro não se contém, alastra-se na memória do observador. Eu que pensava estar sonhando, não sabia que a tragédia apenas se ensaiava naquele palco ensanguentado. Édipo, Otelo e Antígona eram saudáveis demais para se amedrontarem com a morte. Alertaram-nos mas não foram ouvidos.

Esse vendaval levou as escrituras que não se desperdiçaram pois estavam gravadas na memória dos sobreviventes. Nem os ventos fortes conseguiram levar a memória. A memória é uma herança que nem o tempo destrói. Por isso que daqui de cima vejo uma ponta de serra de um lado e uma ilha do outro, em diálogo sobre o destino do mar. Olhando daqui vejo que a velhice é como conta bancária, só retiro dela o que depositei em fartos tempos. Por isso que fico a ruminar aquelas aventuras do tempo em que "as esperanças iam comigo à frente e os desenganos iam ficando atrás".

Vaga luz, vaga-lume, onde está a saída desta casa só parede que solidão se chamou? Onde está aquele momento em que perdemos nossos braços no último dos nossos abraços? Por isso, meu querido fantasma, que vem me falar de amor, ressuscitando palavras, me faça um favor a mais. Vá dizer aos sobreviventes pós-mim que quando daqui me levarem, que seja vestido em tábuas de umburana, se umburana ainda houver. Que me plantem numa cova funda, lá no pé daquela serra, se serra ela ainda for, na divisa entre aqueles dois açudes da minha infância e guardados na minha memória. Pois aqueles dois açudes nascidos antes de mim, são duas lágrimas antecipadas ao meu próprio existir. E se ainda possível for, plantem uma fruteira sobre meu sossego, para que me torne fruto e sombra.


jbatista@unifor.br

05/04/11.

 

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