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Alcides Pinto e a humanização dos interditos

Batista de Lima



É nessa zona de sombras do universo de Alcides Pinto onde se reproduzem o mítico e o místico tão bem detectados na análise de Lemos Monteiro. Essa formação do escritor começa no seu contato com a natureza ameaçadora, com sua busca pelo infinito diante da guerra travada entre o real e o fantástico O universo literário de Alcides Pinto movimenta-se através da humanização de interditos que circundam seu mundo dicotômico estruturado entre a loucura e a lucidez, eros e tânatos, o lírico e o grotesco, o código e o discurso, o pecado e a remissão, o real e o subjetivo. Oscilando entre esses polos, o homem se coloca "solitário e amargurado diante do mistério", segundo José Lemos Monteiro. Para esse mesmo analista, é nessa zona de deriva onde se aloja a gênese da mitologia alcideana que pode ser reconstituída, a partir de uma devassa na sua infância, onde o fantástico sedimentou-se ao contato "com uma natureza de fenômenos inesperados como as grandes enchentes e as secas devastadoras". Daí ser interessante, ao se vasculhar seu mundo dicotômico, adentrarmos os meandros do seu discurso, produto de uma tensão permanente com um mundo de códigos, cifras e mitos que lhe incutiram. Libertação ou catarse, a fala de José Alcides Pinto é um desmonte constante como requisito primeiro para a estruturação de uma ordem própria. O seu drama criador está em ajustar essas peças soltas da engrenagem literária que quer construir. Isso porque ele quer um discurso sem pele onde o sonho, o alegórico, o fantástico e o absurdo se mostrem primeiramente como abismos para apenas num último instante se tornarem sensíveis. Talvez essa ânsia de primeiro vasculhar estruturas profundas seja um apelo ao seu leitor co-autor de, diante do aterrador mundo que se esvai desses abismos, conseguir uma parceria na construção de uma pletora de contenção, de uma pele reforçada na superfície do discurso. Esse discurso é avariado exatamente na sua pele quando mais ousado ele se torna. A ousadia maior nesse setor se regala nas suas manifestações surreais. "Eu sou aquele que come as flores do aniversário. O que se deita no olho, o que se firma no índex / e que ao amanhecer ainda está envolto na densa fuligem da noite / e que o sol não consegue raspar com seu estilete de fogo". Apesar da preocupação de subverter uma ordem de nível de superfície, e do absurdo de comer as flores do aniversário, o que há é uma instauração compreensível de uma subjetividade que necessita do fechamento do olho para que ela se revele e que mesmo com a claridade do amanhecer é a fuligem da noite que prevalece como zona de mergulho na estrutura profunda. É nessa zona de sombras do universo de Alcides Pinto onde se reproduzem o mítico e o místico tão bem detectados na análise de Lemos Monteiro. Para esse analista, como já foi dito, essa formação do escritor começa no seu contato com a natureza ameaçadora, com sua busca pelo infinito, com suas alucinações diante da guerra travada entre o real e o fantástico e com a desordem do mundo onírico que ele teima em organizar e entender. Esse panorama é propício para a fundação do surreal. Afinal seu paraíso perdido começa pelo discurso vigiado que ele gostaria muito que transcendesse esse aparato linguístico que não optamos por merecê-lo. Essa busca leva então a uma valorização do inconsciente onde se cultivam mais facilmente as oposições à racionalidade, mesmo que para isso haja o culto do sadismo, da sedução, da busca pelo macabro e da antropofagia. Mas o mais importante é que nesse porão, as palavras sejam desencarnadas de suas ideias tradicionais, sejam desmoralizadas nas suas tentativas de alienação. As palavras passam a ser encarnadas pelo seu estro. Elas passam a uma supervalorização, mas dentro de uma nova ordem, animadas pela sua genialidade criadora, que exige que o sopro do existir seja oriundo do poeta numa via de dentro para fora. Essa palavra ressuscitada do seu porão vem renovada e grávida do poeta. "Farejo, nessa luz escura da terra, os pés dos meus avós atravessando o mundo, marchando sobre o áspero destino da minha vida". É preciso, pois, a libertação, começando primeiro pela influência alienadora mais forte, o discurso ancestral. Uma outra forma da humanização dos interditos inevitáveis é a ironia. Essa ironia segundo Lemos Monteiro, se aloja principalmente nas hipérboles. O exagero do narrador diminui o impacto da descrição ou narração da cena. O mesmo acontece com relação ao demônio, que diante da quantidade numerosa de íncubus e súcubus que ele cria, há uns enfraquecimentos da espécie demoníaca. A humanização do demônio está muito bem apresentada por Lemos Monteiro no seu livro "O universo mí(s)tico de José Alcides Pinto". O primeiro passo para essa desmitificação, segundo esse ensaísta, começa com José Alcides Pinto estabelecendo laços afetivos com o demônio. Esse fenômeno ocorre principalmente na sua única peça teatral que deixou escrita e foi encenada pela Comédia Cearense sob a direção de Haroldo Serra. Ali o demônio aparece tão desprovido de suas forças sobrenaturais que o auditório passa do medo inicial, a uma certa piedade do ente das trevas que é posto frente a frente com a claridade racional. Esse enfraquecimento do demônio é uma forma de humanização tão significativa que não nos compete mais querer desvendar seus mistérios e sim com eles estabelecer uma convivência harmoniosa, tendo em vista que o que se observa é uma manifestação do nosso duplo numa revelação até terapêutica. Ao se assistir "Equinócio", adquire-se uma certa leveza, pois ao vermos nossos demônios no palco sendo administrados nas suas tendências maléficas, concluímos pelo seu enfraquecimento e pela nossa possibilidade de administrá-los. Finalmente constata-se que os interditos em Alcides Pinto não colocados entre os polos de suas dicotomias como forma de propiciarem maior contato humano. Humanizar é conviver. Sexo, morte e loucura se completam porque se convivem. São colocados no palco da vida, para, dirigidos nessa grande encenação que é o viver, revelarem-se nos seus desvãos, mostrarem suas fraquezas e suas fortalezas, travarem no palco da existência, esse embate permanente que carregamos, entre o peso do mundo e nossa capacidade de resistência.

 

03/11/2009.

 

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