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  • Foto do escritorBatista de Lima

A via quase sacra

Batista de Lima


Sipaúbas se engalanava todos os anos para a festa do padroeiro. São Sebastião era reverenciado por nove noites de janeiro até o dia da procissão de encerramento, quando o santo saía da capela e desfilava garboso em um andor pelas quatro ruas do lugar. Padre Jacinto ia à frente paramentado, benzendo tudo que via nas ruas. Até cachorro solto e pinguços caídos nas calçadas recebiam o jato de água purificada, afinal, segundo o reverendo, todos eram filhos de Deus. Só o Prefeito não aparecia. Não aguentava ver o santo no alto do andor e ele a pé. Afinal era Prefeito e Coronel.

O bom da festa era o Circo de Fuxico que vinha todo ano. Fuxico era o dono do circo e Dalilinha, sua companheira, era a atração principal. Os dois chegavam numa fubica com alguns apetrechos circenses. Pediam lençóis emprestados, nas casas, para fazer a empanada. Quem emprestava um lençol, ganhava um ingresso para o espetáculo. Alguns moradores eram contratados para fazer algum papel na apresentação. Fuxico era o palhaço. Dalilinha era malabarista, contorcionista, mulher macaco, vendedora de ingressos e de bombons.

Dalilinha era a atração principal por conta de seu biquíni com que se exibia. Muitos maridos chegaram a ser proibidos de assistir ao espetáculo por conta das vestes pecaminosas da atriz. Os adolescentes, no entanto, arranjavam uma escada e, escorados em um poste, iam olhar Dalilinha trocar de roupa numa tenda improvisada de lençóis. Era uma festa, até o dia em que a escada quebrou-se com oito frangotes que se estatelaram sobre a atriz ainda em pelos de mulher macaco. Mas o principal acontecimento estava por vir.

Acontece que na última vinda de Fuxico e sua companheira, veio também um soldado de polícia que, ao término da festa, fugiu com a desejada mulher do circo. Fuxico ficou só e arranjou como companhia permanente uma garrafa de Fubuia, a cachaça da terra, feita em fundo de quintal. Todos os dias ele ingeria uma garrafa da gororoba ardente. Padre Jacinto apiedou-se da bebedeira de Fuxico e o chamou para uma longa conversa. Convenceu-o a encenar o Mártir do Gólgota na Semana Santa que se aproximava. Era só procurar atores na comunidade.

Fuxico, depois de mais de um mês, só havia conseguido três atores entre toda a população. Não tinha como encenar uma peça que exigia mais de dez artistas além e inúmeros figurantes. O vigário, diante do impasse, resolveu que a apresentação seria apenas na “Via Sacra”. Um ator seria o Cristo a carregar a cruz, uma atriz seria Nossa Senhora e o outro seria o soldado torturador do Cristo. O padeiro, um dos atores, exigiu ser o soldado torturador, o que impôs ao outro artista a condição de ser o Cristo. A mulher do padeiro foi a escolhida para a mãe de Cristo. Não sabia o vigário, nem Fuxico, que Bonifácio, o ator no papel de Cristo, era amante da mulher do padeiro.

Marcado o dia da “Via Sacra”, em plena Semana Santa, os atores treinaram para a exibição, com o padeiro maquinando fórmulas de se vingar do Bonifácio que ele sabia que mal saía pela porta da frente de madrugada para ir assar pão, o malandro ingressava pela porta dos fundos. Assim, foram preparadas as ruas para o desfile religioso com cruzes em cada estação. Sobre o morro do cruzeiro, no fim da rua, o Cristo seria crucificado ao lado dos dois ladrões que lá já estavam crucificados com cordas e esperando o salvador. A população contrita e o vigário lacrimejando começaram o cortejo com o comércio fechado.

Na primeira estação o padeiro soldado já aplicara duas chibatadas nas costas do Bonifácio Cristo, mesmo tendo sido dito que só na terceira estação começava a tortura. O Cristo sentiu a mão pesada do padeiro, muito mais forte do que tinha sido combinado. Na segunda estação, o chicote funcionou mais forte para reprovação de Nossa Senhora e preocupação do Padre oficiante. Na terceira estação já foram despejadas seis chibatadas nos coros do imitador de Cristo. O sangue já começava a fluir nos costados do ator.

Nas estações quinta e sexta, o Cristo já gemia ao peso do lenho, mas principalmente diante da tortura cruel que lhe era imposta. O povo acompanhante já estava importunado com tão forte tortura e tomava o partido de Cristo. Nossa Senhora já havia advertido com veemência o soldado torturador, avisando que era apenas uma encenação.

O vigário já exibia algumas manchas de sangue nas suas vestes talares, e recomendou em pé de ouvido que o soldado parasse a tortura. Foi então que em plena sétima estação, o Cristo jogou fora a cruz e partiu para o revide no soldado padeiro. Começou então uma luta ferrenha, verdadeira pancadaria entre os dois e a população prorrompendo aos gritos:

– Bate nele, Cristo!

– Bate nele, Cristo!


FONTE: Jornal Diário do Nordeste - 10/02/15.


 

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