Batista de Lima
Nunca estivemos tão desamparados como agora. À beira de um caos alado, sabemos da iminência de algo por acontecer. Criamos tantas tecnologias para nosso bem-estar que nunca imaginávamos que esses monstrinhos um dia se voltassem contra nós. O que mais acomete o homem neste momento, no entanto, é sua impossibilidade de narrar-se. Um homem não se narra porque não se conhece. Não se conhecendo, ele se sente desamparado, simulacro mal acabado de si próprio. Ele vacila indeciso diante dos abismos que conduz, não os enfrentando. Diante dessa encruzilhada, os aparatos salvadores fracassam por não adotarem mais as experiências particulares nem aceitarem os saberes que delas poderão advir. Isso leva a um enfraquecimento, inclusive, da literatura, principalmente no seu gênero mais edificante, o romance. O declínio do romance é consequência do desprezo que temos pelas experiências particulares, pelas manifestações do regional. O silêncio vai se instalando entre as pessoas como uma fala do desamparo. Por isso que sofremos pelos circunstantes que não têm o que dizer, sofremos mais pelos nossos filhos e muito mais pelos nossos netos que não conhecemos e não sabemos se falarão. Algo se perdeu no nosso caminho de ida porque não nos preocupamos, no seu percurso, em construirmos o caminho da volta. Transitamos por um labirinto, sem desnovelar o fio que nos poderia orientar o percurso do retorno, e aí nos perdemos. As convenções e os sistemas destruíram as manifestações individuais e as vanguardas. A crise atingiu a palavra, desfigurando-a e atingiu a imaginação, embotando-a. Há, portanto, nos escritores, uma tentativa de vitaminar a palavra na sua anemia semântica. Há um recurso metalinguístico em andamento, em que a preocupação primeira de quem escreve, é auscultar os potenciais que ainda restam na palavra. A metalinguagem tem sido um território por onde escritores têm transitado. Eles vasculham entre as palavras a granel, em busca das sementeiras mais propícias que poderão dar nascedouros necessários à boa colheita. A palavra precisa se conhecer, para o cumprimento daquilo que dela é esperado. Afinal, o desamparo que nos acomete anda de braço dado com o desamparo da palavra. Essa palavra, diante de uma representação em xeque, termina sendo utilizada a serviço do exercício da fabricação do caos. O texto não apresenta princípio nem fim, não defende uma idéia, quer é encher o branco carente da página. O caos é uma terra arrasada onde jazem os escombros da representação. A incerteza do que virá a seguir, que ninguém sabe, é que provoca esse desamparo inquietante. O verbo ´ser´ volta a perder sua utilidade. Ninguém mais ´é´, todos apenas estamos. Estamos em caminhos traçados, bois seguindo para a matança, subjugados, vencidos. A espada de Dâmocles afiada sobre nossas cabeças. O mundo todo, com todas as suas dores, de cócoras, na ponta do nosso nariz. É difícil não sentir o que sangra, salpicando-nos de sangue, suor e lágrimas. Afinal, o mundo todo está no mundo todo. Nada está indevassável. Nos mais recônditos rincões, as parabólicas levam o brilho que encandeia e as dores que pungem. Não há mais a santa ignorância do homem isolado. Tabaréu, beiradeiro, matuto, caipira e índio estão todos antenados. Hoje são palavras desgastadas. Todos são pracianos. Minha praça é, pois, minha cidade, é minha debilidade debruçada numa planície sem fim. Se me escrevo, estou inscrevendo-me numa página de carne e osso, artérias e chaminés, pele vulcânica em permanente erupção. As ruas são versos às vezes livres, às vezes métricos, às vezes túgidos. Circular nas suas entranhas é desencantar cercanias. Não há lá fora, só há aqui dentro. Não há periferia, só há centralidade. Minha cidade é uma grande mesa sem arredores, onde, comensais, nos servimos de nós próprios em terrinas de desamparo. Minha cidade é uma pergunta procurando sua resposta. Tenho certeza de que meus descendentes um dia me procurarão nessas vielas e encontrarão um fôlego avariado, uma insensatez cravada nos espigões. Eles chorarão esse nosso aprisionamento. Olharão dos escombros desses nossos labirintos numa leitura desse texto surreal que estamos escriturando e não entenderão a nossa inconsequência. Minha cidade é uma página branca buscando um texto. São tantos textos que ela absorveu que termina por não ter texto nenhum. São tantos textos que se empilham que não sei qual é o meu. E aqui desamparado no fundo desta praça que ainda resta, procuro o ar que um dia por aqui passava. São tantos signos que se empilham que a língua desta urbe se torna estranha. Quando tentamos ler a escrita que nos cerca é uma fala estranha que evolui das ruas, é um rugido de algo estranho sobre o qual nos espojamos. Esta cidade agora só nos responde, se perguntamos. E quando responde, são respostas tantas neste universo de símbolos que um silêncio estranho paira sobre nós. És, pois, minha urbe, a delícia do meu olhar, o desencanto aos meus ouvidos. Quando transito por minha cidade, transito por sobre mim. Não há mais distância entre mim e o corpo urbano sobre o qual me debruço. Quando me mostro, é o que de mais belo me revela, foi minha cidade que me ensinou a encobrir o que de feio transporto. Não vejo cartão postal mostrando o degradado. Só as maravilhas se mostram. O discurso desta cidade é uma construção de palavras selecionadas. Isso porque a sargeta, a favela, o esgoto, a cárie das ruas nós encobrimos para não nos revelarmos. Entre esses dois mundos, nos situamos com uma voz rouca e anônima procurando guarida no seio da linguagem. Mas é tudo convencionado para nosso desespero. O que me faz, já está feito. Não posso então me construir se não posso elaborar os materiais de que minha construção exige. Subjugado pois a esse mundo que massacra, só resta então a certeza do desamparo, não apenas meu, mas de toda essa geração que se abisma. Esta cidade é pois um território desolado onde inscrevo minha impossibilidade de devassá-lo, onde apenas posso contribuir para essa pandemia de meu povo, a síndrome do desamparo.
30/06/2009.
E-MAIL: jbatista@unifor.br
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