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A solidão de Clarice

Batista de Lima


Uma leitura das narrativas de Clarice Lispector nos leva a várias interpretações. Uma delas, de cunho pessoal da autora, denota uma profunda solidão que cresce à proporção que seus livros vão aparecendo. É por isso que no seu romance “A hora da estrela”, de 1977, sua última narrativa, o tempo corrosivo em forma de um rádio de pilha, que apenas transmite as horas a cada minuto, põe Macabea boiando entre o abismo da solidão e a realidade da superfície. Clarice é tão introspectiva, que seu texto atua de dentro para fora, em um movimento contrário ao que fazem os escritores na sua maioria. Ela se põe na estrutura profunda dos seres para deles evoluir para a superfície como forma de salvação.

Essa sua solidão leva à literatura de catarse. Só foi possível chegar aos 57 anos porque a mão estirada da literatura a salvou. Ela encarou o efêmero da existência e sua desilusão diante das banalidades do mundo, camuflando-se por trás da linguagem, sua grande companheira. Fez das palavras seus brinquedos verbais e resistiu a esse mundo, transbordando de emoções diante da linguagem. Além disso coloca seus personagens diante do heroísmo de buscar uma liberdade a qualquer custo. Daí que ser livre para ela passa a ser um ato de grande heroísmo. Liberdade é a última esperança do ser. É a quebra de uma casca que encobre o ser que se enrosca nas artimanhas das convenções.

O grande trabalho de Clarice é a busca da simplicidade. Por ser uma personagem superior, ela enceta enorme esforço para se aproximar dos comuns mortais. Mesmo assim, ainda se apresenta difícil, hermética naquilo que transmite. Por isso que, extremamente sincera, era de uma personalidade de poucas mas profundas amizades. Essa qualidade, que para alguns era defeito, leva a outra característica que a companhou por toda a sua produção literária, a concisão. Nunca disse mais do que devia. Foi sempre econômica nos seus escritos. Mas sua grande característica foi a epifania. Para isso foi preciso extrair do íntimo das coisas, uma força rebelde que elas guardam. Clarice trabalha com a essência humana sob um prisma ontológico.

Também há momentos em que uma luz evolui do personagem iluminando-o em um processo de transfiguração. Esse fenômeno ocorre principalmente quando se instaura um diálogo interior no personagem que mira uma libertação. É que a criatura clariceana fragmenta-se diante do mundo conturbado. Clarice está no centro das coisas, em um interior dos mais profundos e tenta libertá-lo, fazendo fluir o que lá está rico de significações. Há como que uma porta de passagem entre metonímia e metáfora. O que está por fora é apenas figuração pois o real é íntimo, é fala. Daí ser preciso prospectar o que se esconde feito um sol de cada coisa.

Clarice observa porque se põe fora de cena para melhor examiná-la. Por estar fora do acontecer ela está só. Sua solidão verbera porque o mundo que ela avista, as pessoas não veem. As pessoas são atores de uma cena que não veem mas estão sendo vistas pela narradora que não é do mundo vislumbrado. Daí sua solidão. Tudo está fragmentado aos seus olhos. Unir esses pedaços é uma forma de ficar fora deles. O que ainda a salva é a linguagem, através dela vai sendo pintada a cena em que ela não se coloca por não pertencer àquele mundo observado.

Mulher de um coração selvagem, construiu seu mundo indevassável para além do trivial de cada ser. Entendê-la é preciso sofrer com ela, mas sofrer muito para ter a certeza do existir. Macabea ficava feliz quando apanhava porque se convencia da própria existência. Foi preciso morrer para, feliz da morte, saber que existiu. Clarice escreveu para sobreviver. Sua vida teve sentido na linguagem. A linguagem foi e continua sendo a casa do seu ser. Portanto é preciso cautela ao abordá-la. Ela não perdoa quem ingressa no seu mundo, na sua casa, no seu ser. Sua água viva muito queima.


jbatista@unifor.br.

10/12/19.

 

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