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A solidão da lua

Batista de Lima



É muito tímida a fala da lua. Ela passa, olha, esconde-se por trás de alguma nuvem e pouco diz. Sua voz redonda é sempre no mesmo tom. Sua preferência é pela penumbra. Nem clara, nem escura, ela é lunar. Romântica na sua timidez, seu olhar é o luar suspirante. Uma lua sobre a floresta é de andar rápido, mas uma lua sobre um deserto é quase estática. Lua e deserto se encaram, flertam em cumprimentos demorados. Uma solidão, no entanto, se põe entre os dois, numa dança quase sem movimentos. São duas solidões que se entrelaçam com fios de silêncio. São dois seres que se miram em desejos tímidos.

Homens desertos se enamoram da lua e se vestem de luares. São poetas, boêmios e solitários. E por falar em poetas, ando, por enquanto, na companhia de Ali Abdulla Khalifa, um habitante do deserto, enamorado da lua. Esse poeta árabe acaba de editar em sua língua materna uma coletânea de belos poemas românticos em que mistura lua, deserto, ternura, saudade e misticismo. Para sorte nossa, Maati Kabbal, seu conterrâneo, traduziu os poemas do árabe para o francês, e, por mais sorte nossa, Cristovam Buarque, senador brasileiro, traduziu do francês para o português. Daí o livro nos chega com duas traduções, o que não é bom para a poesia, mas que nesse caso foi proveitoso porque dois poetas reescreveram praticamente os poemas.

Cristovam Buarque foi a Manama, no Reino de Bahrein, participar como membro do Jury do Prêmio Isa, em 2014. Lá encontrou-se com o Dr. Khalifa, coordenador do Prêmio e autor do livro, já traduzido para o francês. São poemas que, mesmo sem perder o sentimento árabe, alcançam uma universalidade característica dos bons poetas de qualquer lugar. É evidente que em suas páginas pontificam signos beduínos como palmeiras, areias, solidão e amor. Com todos esses elementos da cultura árabe, nosso Senador não poupou esforços para vertê-lo para o português e depois editá-lo ainda em 2014. Chegou-nos enfim, "Lua Solitária", uma viagem poética de 71 páginas de poemas líricos.

Essa viagem começa com a imagem solitária em que a lua e o deserto se miram e amarram suas solidões em idílio de muita espreita. Logo em seguida, "Para saudar a dama de verde", o poeta se ajoelha diante da amada e lava-lhe os pés com muito amor, como se aquela água das obluções fosse algo divino. A água, no deserto, é tão rara e preciosa que mais parece óleo para untar carícias. Os rituais vão, pois, surgindo como mediadores entre aconchegos e esperas. É um derramar de paciência que dá a impressão de que na cultura árabe as criaturas cultivam eternidades antes mesmo de nelas ingressarem. Há uma lentidão nos gestos como se cada gota do tempo tivesse de ser absorvida meticulosamente.

Mastigando melodias, o leitor vai escalando cada verso como se fosse sua missão "curar as vivendas devastadas / soletrar o sonho letra a letra". Já numa "linguagem própria da sede", o poeta "esbofeteia as trevas, canta / e ilumina a espera". Há portanto uma sede que sai da terra e invade os corpos não como dor, mas carregada de sensualidade. É como se o amor pudesse acontecer numa travessia forrada com um tapete de cardos. Daí que se observa que cada persona que aparece como referência nos poemas, vem carregada de confins. Nessa viagem desbussolada, é necessário tirar as vestes da noite para vê-la amanhecida e depois, na claridade, transformar neblina em raio, para escapar do silêncio. Ali Abdulla Khalifa verseja como quem reza. Ele incensa seus versos com temperos que oscilam entre o sacro e o profano, mas tudo numa subjetividade diáfana.

É de forma diáfana que seu canto se centra na mulher amada. Nesse momento sua poesia alcança a culminância do opúsculo: "teus olhos romperam a noite para transformar suas trevas / em pombas brancas". Essa poesia não é apenas em torno da solidão da lua mas é o canto de um coração carregado de lembranças, no ponto limite entre o silêncio do deserto e o feitiço do luar. Esse beduíno extenuado e despossuído procura pela amada por esse "país que se estende até os confins da miragem". Daí que cada gole de seu cansaço e cada galho de seu sofrimento vão se transformando em versos em que palavras salvadoras vão se dando as mãos como tâmaras em cachos.

Essa inspiração na amada leva o poeta a afirmar: "De teu coração eu faço uma lamparina (?) Tenho por roupa apenas minha nudez". Mesmo com esse canto quase permanente à mulher amada, outros signos pontificam na sua poesia de forma enfática. É o caso, além da lua e do deserto, da água, que por ser escassa, mitifica-se enraizada no inconsciente de um povo que luta historicamente pela sua aquisição. "De tua fonte, oferece-me, para me salvar / uma gota d'água. / Desde longo tempo, busco uma fonte / pura para estancar minha sede". Depois da água, vem a terra com seu hálito, como mitopoético abundante na obra. Dos animais, é o cavalo negro o sonho do beduíno errante na sua aventura pelas distâncias.

Ao final da leitura dessa coletânea de poemas de Ali Abdulla Khalifa, o leitor sente-se extenuado pela sede, pela inacessibilidade à amada, pela frieza da lua estática e pela quentura do deserto sem fim. Por outro lado, transcendem de suas páginas, aspectos curiosos da cultura árabe, em que o mítico e o místico muitas vezes se confundem. É como, por exemplo, se a lua de lá não fosse a mesma lua daqui. Lá ela é mais vista porque há menos nuvens no céu. Também há o fato de ser a lua, a única companhia do peregrino nas suas noites de errâncias. O deserto é um desafio para o poeta, mas desafio maior é para o leitor brasileiro ao se deparar com poemas com dupla tradução. Mesmo assim vale a pena sua leitura. E daqui fico imaginando quão rica não será sua leitura em árabe, a língua original dessa bela jornada poética.


FONTE: Jornal Diário do Nordeste - 26/05/15.


 

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