top of page
  • Foto do escritorBatista de Lima

A praça era nossa

Batista de Lima


Se você é daqueles que costumavam frequentar as praças aos sábados à tarde, não vá ao Centro de Fortaleza. Se por acaso, ousadia ou necessidade tiver que ir, evite passar pela Praça José de Alencar. Evite encontrar o inferno de Dante instalado no coração da nossa cidade. O espaço ali existente não dialoga mais com a nossa memória. Não há mais correspondência entre o "locus" histórico e o mafuá ali instalado por vendilhões. O espaço de respiração da urbe, um dos seus mais ativos pulmões, está acometido da tuberculose, da insensibilidade e do desrespeito provocados por quem não ama Fortaleza.

A antiga Praça Marquês de Herval, hoje José de Alencar, sempre esteve impregnada de significações duráveis que barracas de lona soterram. O Theatro José de Alencar, construído numa época em que a cidade vivia embelezamentos, arrasta seu repertório de signos para um lado da praça que o presente tributável encobre e esquece. Toda uma linguagem mitológica que dali emanava vai dando lugar a um espaço branco de vivências. Impossível aceitar que um equipamento símbolo de uma "belle époque" fortalezense se torne apenas espectador de um apocalipse urbano em que o fartum vai dissolvendo lembranças e rompendo com o patrimônio memorial.

A praça que era um poema para o transeunte hoje é um ajuntamento de versos de pé quebrado. Não vá, pois, àquela praça que um dia foi bela, pois hoje é um cadáver mutilado. É melhor guardar na lembrança aquele espaço em que havia árvores, havia bancos para descanso e até passarinhos repetindo árias ouvidas do teatro. Afinal, a consciência histórica é uma conquista que preservamos. Acontece que naquela praça essa conquista tem sido usurpada nos colocando esvaziados de significados. Esse desprezo pelo passado não deixa de ser uma mutilação do futuro. Essa fratura exposta da cidade dificilmente poderá ser consertada sem que deixe cicatrizes incorrigíveis.

Ao transitar por aquele logradouro, o visitante procura resquícios do antigo Jardim Nogueira Acióli, que posteriormente mudou de nome para Jardim Franco Rabelo. O antigo coreto, em que duas vezes por semana ouviam-se belas retretas executadas por uma banda de música de militares bem fardados, deu lugar a serviços de som com anúncios de produtos de origem duvidosa, intercalados por músicas bregas com letras de duplo sentido. No lugar do jardim, plantaram cimento cru, atrativo para o aumento do calor e enfeiamento do espaço. Em um certo período encheram-na de ônibus fumacentos que foram retirados e as barracas fizeram a ocupação.

Desde primeiro de maio de 1929, data do centenário de nascimento de nosso maior romancista, José de Alencar, que sua estátua vinha guardando a praça. Hoje é necessário uma investigação através do "mercado persa" ali instalado para se descobrir em que espaço está escondida a estátua do neto de Bárbara de Alencar. Os bancos que ali existiam para descanso dos transeuntes, vindos dos subúrbios, são apenas uma lembrança. Hoje, o que se presencia ali é a venda de tudo que pode ser vendido. Até corpos vivos para prazeres rápidos ali podem ser encontrados a preços tabelados.

Essa falta de consciência histórica dissemina-se para outras praças e ruas da cidade. O velho Theatro José de Alencar parece um navio encalhado no meio de abrolhos. O antigo e charmoso Lord Hotel perdeu sua nobreza e se desmancha no esquecimento. A antiga Rádio Iracema, no lado oeste da Praça, emudeceu e não se sabe onde está escondida. A Igreja do Patrocínio está cercada de grades possantes para que a marginália não surrupie seus últimos bancos. A sua vizinha Praça da Lagoinha sobrevive nos livros de história e nas mentes dos últimos frequentadores ainda vivos.

O que se faz hoje em nossa cidade é destruir o que por mais de 80 anos construiu-se de patrimônio arquitetônico. Dos casarões do Jacarecanga ao Palácio do Plácido, na Santos Dumont, a sanha destruidora dos incautos nos tira das ruas e coloca-nos apenas diante de velhas fotografias ou de trabalhos recentes de fotógrafos como Maurício Cals e Vicente de Paulo, que conseguiram ainda fotografar o que sobrou. Do que se construiu de 1850 a 1930 em Fortaleza pouco resta, e mesmo assim, quase tudo esquecido entre espigões de cimento e aço ou tendas de lona e varas.

Praças, praias e ruas são espaços públicos para usufruto de toda a população no seu ir e vir, além do lazer e do descanso. Acontece que, no momento em que alguém arma uma barraca em um desses espaços do povo, ocorre uma privatização da coisa pública. O comércio fixado no espaço público cria interditos para os verdadeiros donos do lugar que são as pessoas em geral. Por isso que, se não há uma consciência em torno da preservação desses locais, compete ao poder público a proibição desses posseiros e grileiros dos bens públicos. Por isso que na praça que lhe leva o nome José de Alencar esculpido e esquecido olha para o nascente, lá para onde as coisas nascem, na esperança de que surja na alvorada, alguma mente que salve da contaminação aquela praça que um dia teve saúde.


FONTE: Jornal Diário do Nordeste - 21/04/15.


 

3 visualizações0 comentário

Posts recentes

Ver tudo

Comments


bottom of page